ARTIGOS
O recreio no Jardim de Infância: espaço e tempo para construção de culturas da Infância
Olga Azevedo
Instituto de Educação – Universidade do Minho azevedoolga159@gmail.com
Resumo
O recreio no jardim-de-infância é um dos poucos espaços que resta para que as crianças se encontrem e façam aquilo em que verdadeiramente são especialistas: brincar! Este deve ser um espaço e um tempo valorizados, pois é aí que este grupo constrói as culturas que o identificam e o distinguem como grupo geracional, distinto dos demais. Esta construção de culturas faz-se através das interações inerentes ao ato de brincar.
Nesta
sociedade globalizada, a competição e o sucesso académico fazem parte cada vez
mais cedo da vida das crianças. Assim, é importante devolver-lhes estes espaços
e tempos que lhes permitam brincar e jogar, uma vez que estas ações se assumem
como indispensáveis para o seu bem-estar e para o desenvolvimento saudável das
suas habilidades físicas, cognitivas, emocionais e sociais.
Palavras-chave: Jardim-de-infância, recreio, jogos e brincadeiras, culturas de infância
Abstract
The kindergarten playground is one of few remaining places where kids can find themselves and do what they are truly experts at: playing! This must be a valorized space and time because there is where this group creates the cultures that identify and distinguishes itself as a generational group, apart from the rest. This culture building is made through play inherent interactions.
In this globalized society competition
and academic success are part of kid’s lives. That’s why it’s important to
understand and give them back space-time that allows them to play, once these
actions are indispensable for their well-being and the healthy development of
their physical, cognitive, emotional and social skills.
Keywords: Kindergarten, playground, playful and play, childhood cultures
Résumé
L'aire de jeux dans le jardin de l'enfance est ’un des rares espaces laissés pour les enfants se rencontrent et font ce qu'ils sont vraiment des experts : jouer! Cela devrait être un espace et un temps évalué parce que ce où ce groupe construit des cultures qui identifie et distingue en tant que groupe générationnel distincte de trop. Ce bâtiment cultures est à travers les interactions inhérentes à l'acte de jouer.
Dans cette compétition de
la société mondialisée et la réussite scolaire font partie de chaque un âge
plus précoce de la vie des enfants. Ainsi, il est important de comprendre et
retour leur espace et temps pour leur permettre de jouer, que ces actions sont
pris comme essentielle à leur bien-être et le développement compétences en
bonne santé physique, cognitif, émotionnel et social.
Mots-clés: Jardin d’enfants, cour de récréation, jeux et amusement, cultures d’enfance
INTRODUÇÃO
No presente artigo pretende-se aprofundar o conhecimento sobre o recreio no Jardim de Infância (JI) enquanto espaço e tempo de construção e transmissão de culturas pelas crianças, nomeadamente das culturas lúdicas infantis, às quais é muito importante estar atento, pois poderá assumir-se na contemporaneidade como um dos poucos espaços e tempos onde
o direito a brincar é respeitado com toda a sua seriedade. Assumindo que as
crianças são cidadãos com opinião e direito a participar nas suas sociedades,
quer porque a transformam quer porque sofrem influências pela sua transformação,
entende-se que é fundamental dar-lhes voz nos assuntos que as interessam e
influenciam diretamente as suas vidas. É partindo deste pressuposto que a
brincadeira e o direito da criança brincar será aqui refletido, com a
centralidade e importância que efetivamente têm na sua vida.
No contexto deste estudo o recreio entende-se como um espaço e tempo estruturados pelos adultos educadores, onde os jogos e as brincadeiras são a atividade principal. As reflexões desta pesquisa sustentam-se nas vozes e ações das crianças, entendidos como atores e autores dessas brincadeiras. Esta investigação qualitativa, de cariz etnográfico, realiza-se num jardim-de-infância público[1], na qual a educadora assume também o papel de investigadora do próprio grupo de crianças. Na recolha de dados participam trinta e oito crianças, das duas salas que constituem o JI, com idades compreendidas entre os três e os seis anos de idade. Além da observação participante, neste estudo etnográfico também se realizou um grupo focal com as crianças de cinco anos de idade. Com o objetivo de contribuir para a compreensão mais aprofundada sobre as culturas de infância que são produzidas pelas crianças no recreio, foram tidas em conta as ações e interações que as crianças levam a cabo com os seus pares, observadas atentamente as brincadeiras que entre elas são promovidas e (re)inventadas, assim como o modo como as crianças se organizam neste espaço e tempo de recreio.
Este artigo integra um primeiro ponto que pretende enquadrar o direito de brincar e a necessidade dos adultos estarem atentos à promoção do seu usufruto e não coerção ou direcionamento. Oficialmente reconhecida na Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC, 1989), a importância do artigo 31 deste documento é reiterada pela emissão de um “comentário geral” pelo Comité do Direitos da Criança que, em 2013, reforça o dever dos responsáveis pelas políticas públicas de proteção e promoção do Direito de brincar cumprindo as medidas legislativas, administrativas, judiciais, orçamentais, promocionais e outras para o seu pleno cumprimento. Este artigo propõe uma reflexão sobre o empreendimento de ações para disponibilizar os serviços, recursos e oportunidades necessárias e adequadas ao pleno usufruto do direito de brincar pelos diferentes e específicos grupos de crianças.
Depois de exposto o conceito de tempo e espaço de recreio de que aqui se trata, num segundo momento, são abordadas as normas de construção do espaço de recreio para as crianças em idade pré-escolar, que em Portugal é regulamentada pelas Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar (OCEPE, 1997). A leitura deste ponto implica o leitor em sistemáticos alertas sobre a necessidade de ter em conta como as crianças gostam e querem brincar, o que se articula com a reflexão que se faz sobre o direito de brincar.
Um terceiro ponto dedica-se inteiramente à exposição de algumas considerações sobre como no recreio, e no âmbito da pesquisa efetuada, foram identificadas, observadas sistematicamente e analisadas as culturas lúdicas das crianças, recorrendo a excertos das frases das crianças que nos contam o modo como escolhem e gostam de brincar. Daí decorrem reflexões sobre as brincadeiras e jogos que foram observadas no recreio estudado; sobre a manifestação das brincadeiras de fantasia do real, sobre as interações entre as crianças no recreio do Jardim de Infância e as suas implicações com as questões de género, sobre a forma como regulam as suas brincadeiras e se apropriam e (re)inventam espaços e materiais.
Este artigo termina com algumas reflexões sobre a forma como o adulto educador poderá partir para a ação, quando tem em conta as revelações das crianças. Ou seja, faz-se a apologia de que será na observação e análise cuidada dos tempos, espaços, materiais (brinquedos) e companheiros que as crianças preferem, assim como na (re)criação de determinadas brincadeiras no quotidiano do recreio – no qual se forjam as culturas infantis – que se fundará a intervenção, ou não, do adulto: na estruturação do espaço, oferta de materiais, adaptação das rotinas, etc. Por fim, conclui-se que o recreio realmente se afigura como um dos raros espaços e tempos nos quais podem acontecer as brincadeiras das crianças nos dias de hoje. A sua preservação está dependente da sensibilidade, olhar e atenção dos adultos que, ao assumir o protagonismo e a participação da criança, compreendem mais profundamente como é que neste espaço de brincar das crianças, embora balizados pelas normas e regras adultas, se cultiva a construção das culturas da infância.
1. AS CRIANÇAS ENQUANTO CIDADÃOS DE DIREITOS
Neste artigo as crianças são consideradas cidadãos com opinião, que vivem e
participam na sociedade, que a transformam e sofrem as suas influências. São
cidadãos com direitos, salvaguardados em documentos normativos vigentes numa
grande parte dos países de todo o mundo, como os Direitos Universais da Criança
(1959) e a Convenção dos Direitos da Criança (1989). Neste sentido é necessário
que as crianças sejam ouvidas nos assuntos que influem diretamente nas suas
vidas.
Os documentos referidos, são de grande importância pela salvaguarda de direitos das crianças que nem sempre se aplicam, que muitas vezes são esquecidos, em defesa do mundo dos adultos, na valorização de saberes e experiências destes e em detrimento da participação, da valorização da opinião e das experiências das crianças, dos seus saberes, gostos e interesses. Sabemos que estes documentos sustentam a imagem de infância ativa e competente, com alguma visibilidade “(…) pelo menos no campo dos princípios e dos discursos” (Fernandes e Tomás, 2011, p. 2).
Na Convenção dos Direitos da Criança (CDC, 1989) adotada pelas Nações Unidas e ratificada em Portugal em 1990 consta no nº 1 e 2 do artigo 31º que:
“Os Estados Partes reconhecem à criança o direito ao repouso e aos tempos livres, o direito de participar em jogos e atividades recreativas próprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artística.
Os Estados Partes respeitam e promovem o direito da criança de participar plenamente na vida cultural e artística e encorajam a organização, em seu benefício, de formas adequadas de tempos livres e de atividades recreativas, artísticas e culturais, em condições de igualdade.”
O nº 1 do artigo 31 da Convenção do Direitos da Criança reconhece universalmente à criança “(…) o direito a participar em jogos e atividades recreativas próprias da sua idade (…)” - ou o direito de brincar, e o nº 2 do mesmo artigo proclama o direito da criança em “participar plenamente (…) de formas adequadas de tempos livres e de atividades recreativas, artísticas e culturais (…)”. Ou seja, este normativo legal não apresenta o direito de brincar das crianças como algo abstrato, pois apresenta-o a par do direito ao descanso, ao lazer e aos tempos livres, e faz a sua conexão com o direito que as crianças também possuem de participação na sociedade: na família, na comunidade e na vida cultural. Neste sentido, entende-se que a participação plena das crianças na vida cultural das suas sociedades realiza-se no direito a brincar promovido com respeito ao contexto social específico onde ocorre ou “(…) quando existe o (re)conhecimento do lugar a partir do qual as crianças veem o mundo e atribuem significado ao que as rodeia, o mesmo lugar onde se cruzam o mundo adulto e o mundo infantil, ou onde são constituídas as culturas da infância” (Sampaio & Barra, no prelo). Ou seja, embora o direito de brincar das crianças seja proclamado e promovido pelos adultos, são as crianças que especificam e mostram o sentido das suas brincadeiras no âmbito das suas vivências socioculturais (familiares, escolares, comunitárias, etc.). É neste sentido que se destaca a relevância da contextualização das atividades lúdicas, culturais e recreativas na estruturação do espaço e tempo de recreio no jardim-de-infância, isto é, alavancadas na escuta dos grupos de crianças e nas suas específicas práticas lúdicas, para a posterior planificação, implementação e supervisão no quotidiano.
Este exercício de cidadania das crianças e o seu direito fundamental de participação na vida cultural das comunidades é realizado através da “escuta intensiva” (Alderson, 1995) das crianças e está, desde logo, expressa no artigo 7º da “Declaração Universal dos Direitos da Criança” (1959), sendo também reforçada pelo artigo 30º da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). No entanto, mesmo nos assuntos que especialmente dizem respeito às crianças, tal como é a brincadeira, na estruturação dos espaços de lazer e recreio (quer privados quer institucionais) as crianças não são chamadas a participar nem são observadas as especificidades das suas culturas infantis. Atualmente, as formas de brincar levadas a cabo pelas crianças são muitas vezes manipuladas para a aprendizagem de qualquer conceito ou competência, sendo por vezes nulo o reconhecimento da sua importância na vida das crianças. Importa salientar que a brincadeira deve ser entendida enquanto atividade fundamental na estruturação dos espaços e tempos do jardim-de-infância.
No âmbito desta problemática, no ano de 2013, o Comité das Nações Unidas publicou o Comentário Geral nº 17 sobre o artigo 31º da Convenção dos Direitos da Criança. Neste comentário, o Comité refere que os Estados Parte não valorizaram devidamente a importância que a implantação de todos os direitos, que constam deste artigo da Convenção sobre os Direitos da Criança, tem para o desenvolvimento e bem-estar das crianças, em especial o direito a brincar. E é este o seu principal objetivo: conduzir os Estados Parte a uma melhor e maior compreensão da importância da implantação deste artigo da convenção. Para tal, o comité estabelece que os Estados Parte são obrigados a elaborar e implementar medidas com vista à realização e aplicação integral dos direitos definidos no artigo 31º. Nesse documento é reiterada a necessária obrigação dos Estados-parte em respeitar e proteger o Direito de brincar cumprindo as medidas legislativas, administrativas, judiciais, orçamentais, promocionais e outras para o pleno cumprimento do artigo 31º, empreendendo ações para disponibilizar todos os serviços, recursos e oportunidades necessárias. O documento alerta, ainda, para a forma como algumas crianças enfrentam ainda mais dificuldades no usufruto do seu direito de brincar durante a infância, tais como as crianças mais pobres, as crianças do género feminino ou as crianças com necessidades especiais.
No sentido de promover uma ampla reflexão sobre o significado e a importância da brincadeira que, muitas vezes, vai sendo deturpada pelos discursos paternalistas, muitas vezes em nome da segurança das crianças, mas também por objetivos escolarizantes e de competição que se vão estabelecendo desde os primeiros anos do ensino pré-escolar, o Comentário Geral nº 17 sobre o artigo 31º da Convenção sobre os Direitos da Criança declara que as crianças que têm ambientes propícios para brincar têm maior qualidade de vida, mais condições para desenvolver a sua criatividade, mais poder de iniciativa e maior motivação, além de desenvolverem habilidades físicas, cognitivas, emocionais e sociais. Reforça ainda a ideia de que o jogo e a brincadeira são essenciais para a saúde e bem-estar, para a promoção da autoestima e de que através do jogo e da brincadeira as crianças desenvolvem competências para negociar, manter o equilíbrio emocional, resolver conflitos e tomar decisões. Em suma, enquanto brincam, as crianças aprendem fazendo, exploram e experimentam material e simbolicamente o mundo à sua volta, vivem novos papéis e experiências através das suas ideias criativas e assim constroem a sua posição no mundo interpretando-o e conhecendo-o.
Ao evidenciar-se aqui a importância de ser observado o direito de brincar, assim como o direito ao lazer e ao descanso, a par de outros direitos que com este competem em supostos graus de importância, pretende-se reforçar a ideia de que a Convenção sobre os Direitos da Criança deve ser considerada na sua globalidade, tal como é compreendido o “desenvolvimento global e harmonioso da criança” em idade pré-escolar pelas Orientações curriculares para a Educação pré-escolar. Assim, a promoção dos direitos das crianças deve ser considerada na íntegra, se aquilo que se tem em vista é assegurar que as crianças realizem todo o seu potencial, inclusive enquanto cidadãs participantes.
2. O RECREIO NO JARDIM DE INFÂNCIA
2.1. O conceito de recreio
As OCEPE (1997, p. 39) identificam o espaço exterior do JI como aquele que permite dar continuidade a experiências de aprendizagem intencionalmente planeadas e desenvolvidas pelo educador e pelas crianças, mas também como “o local privilegiado de recreio onde as crianças têm possibilidade de explorar e recriar o espaço e os materiais disponíveis”. Como tal, é importante que os profissionais distingam também estas duas possibilidades de entender o espaço exterior, sem desvirtuar o conceito de recreio que deve dar maior liberdade e espaço às crianças, e permitir a construção da sua identidade enquanto geração. Como referem as OCEPE “o educador pode manter-se como observador, ou interagir com as crianças (…)”.
O espaço do recreio deve obedecer a regras legisladas pelo estado, como podemos constatar no Despacho Conjunto nº 268/97 de 25 de Agosto, que determina que o espaço exterior do JI deve ser organizado de modo a oferecer ambientes diversificados que possibilitem a realização de atividades lúdicas e educativas. Ainda neste sentido, o Decreto-Lei n.º 379/97 de 27 de Dezembro estabelece as condições de segurança a observar na localização, implantação, conceção e organização funcional dos espaços de jogo e recreio, respetivo equipamento e superfície de impacte. As OCEPE também referem que os equipamentos e materiais do espaço exterior devem ser criteriosamente pensados no que respeita à qualidade, com especial atenção às condições de segurança. Esta ideia parece unânime a todos os intervenientes do JI: crianças, família, docentes, discentes e outros parceiros e colaboradores.
2.2. A estruturação do espaço de recreio
A Lei-quadro da Educação Pré-Escolar (1997) estabelece, entre outros, os seguintes objetivos: (i) promover o desenvolvimento pessoal e social da criança com base em experiências de vida democrática, numa perspetiva de educação para a cidadania; (ii) fomentar a inserção da criança em grupos sociais diversos, no respeito pela pluralidade das culturas, favorecendo uma progressiva consciência como membro da sociedade; (iii) estimular o desenvolvimento global da criança, no respeito pelas suas características individuais (…) e (iv) desenvolver a expressão e a comunicação através de linguagens múltiplas como meios de relação, de informação, de sensibilização estética e de compreensão do mundo. Neste sentido o recreio parece poder ser o tempo e o espaço de desenvolvimento, de concretização e realização dos objetivos expostos ou parte deles.
No que ao recreio concerne resta, no entanto, uma dúvida: se o recreio é o tempo e o espaço das crianças, não deveriam ter o direito a participar com as suas propostas na construção e apetrechamento do mesmo? Quem serão os maiores especialistas sobre os recreios? Quem melhor do que as crianças para perceber de que realmente precisam para levar a cabo jogos e brincadeiras?
Partindo do princípio de que “o espaço, assim como o tempo, não podem ser entendidos como neutros, pois sendo uma construção social expressam as relações sociais que neles se desenvolvem” (Pinto, 2005, p. 12), então, quer o tempo, quer o espaço do recreio no JI devem favorecer “ o processo de desenvolvimento e formação das crianças, respeitando-as como sujeitos” (Pinto, 2005, p. 13). Neste sentido, as OCEPE, que, tal como o nome indica, devem servir de orientação da vida no JI, também expressam a necessidade da criança ser reconhecida como sujeito ativo no processo educativo. Assim, entende-se que o recreio é um espaço que clarifica a diferença entre 'lugares para crianças' e os 'lugares de crianças', pois são elas que detêm o direito a participar na sua construção e apetrechamento, devendo ser escutadas (Alderson, 1995) nas escolhas que fazem para levar a cabo jogos e brincadeiras. O recreio é o lugar onde o saber e a voz das crianças devem prevalecer, por serem os “especialistas” em assuntos de brincadeiras (Barra, 2014, p.138), um dos assuntos mais sérios das suas vidas.
Segundo Dempsey e Frost (2002) os construtores destes espaços deveriam fazer um trabalho de cooperação informada com as crianças. Quem melhor do que aquele que usa, para saber de que gosta ou de que necessita. Neste sentido, é importante que a criança, como verdadeira autora e sujeito de direito à participação, seja ouvida quanto ao que quer, com o que quer e com quem quer brincar, principalmente neste espaço de recreio que, ao invés de ser pensado apenas por adultos, deve contar com a voz de quem o utiliza e a quem é dirigido: as crianças!
3. BRINCAR NO RECREIO E CONSTRUIR CULTURAS
Como referem Fernandes (2011) e Silva (2011), a infância vive hoje em condições muito
diferentes do passado. No entanto, e como Sarmento (2003, p. 10) acrescenta, nem
por isso perdeu a sua “identidade plural (…) A infância está em processo de
mudança, mas mantém-se como categoria social, com características próprias”.
Este autor alerta, também, para o fenómeno da globalização da infância que leva
as pessoas a entendê-la como uma só; acautela, porém, que embora as crianças
vejam os mesmos filmes, ouçam as mesmas músicas, vistam roupas iguais e pareçam
brincar as mesmas brincadeiras, a verdade é que cada criança reinterpreta
essa cultura globalizada de uma forma particular. Cada criança faz apropriações
diferentes de iguais informações, resultado das características próprias deste
grupo geracional, como são o seu espaço cultural, as suas partilhas, as suas relações
e inter-relações com os seus pares e adultos (Sarmento, 2003). Tal como refere
Corsaro (2002, p.114) “As crianças começam a vida como seres sociais inseridos
numa rede social já definida e, através do desenvolvimento da comunicação e
linguagem em interação com outros, constroem os seus mundos sociais”.
Sabemos que as crianças constroem as culturas identitárias da sua geração nas interações com os seus pares, com influência do contexto social em que vivem. A grande questão é saber que oportunidades têm as crianças de encontrar os seus pares para brincar. De acordo com Silva (2011), muitas crianças só no recreio escolar têm oportunidade de brincar em interação com outras crianças, por vários motivos, como o trabalho dos pais, o facto de chegarem tarde e ficarem fechados em casa e “ligados” às novas tecnologias, devido ao fenómeno da baixa natalidade, à vida em apartamentos, sem exterior seguro, entre outros. Quando nos referimos ao recreio, e concordando com Silva (2011, p. 8), devemos entender estar “perante uma problemática centrada em absoluto nas crianças, num tempo e num espaço delas, para seu uso discricionário e, enquanto tal, de onde os adultos se devem manter na mais discreta das distâncias.”. Tal implica que se dê maior atenção e importância a este tempo e espaço, até porque as brincadeiras permitem que as crianças realizem aprendizagens em que o desenvolvimento pode ganhar complexidades graças às interações entre os pares em situações imaginárias e na combinação de regras de convivência (Fantin, 2000). As brincadeiras permitem a construção de significados, “promovem conquistas cognitivas, envolvem emoção e afetividade, além de estabelecerem e romperem laços que permitem maior compreensão da dinâmica interna das relações e entre as pessoas em um determinado contexto” (Fantin, 2000, p. 87). Parece, assim, pertinente o estudo que norteia este artigo, por abordar as culturas de infância construídas neste tempo e espaço de eleição da infância e de suma importância para a construção da sua identidade enquanto grupo geracional.
A recolha de dados do estudo “Chegou a hora do recreio! O recreio: espaço de construção de culturas da infância” foi realizada através da observação participante no tempo e espaço de recreio de um jardim-de-infância público com grupos de crianças heterogéneos com idades entre os 3 e os 6 anos. Através das suas vozes e das suas ações foi mais fácil compreender as suas interpretações, intenções e culturas. Ainda, para dar voz às crianças, foi constituído um grupo focal do qual fizeram parte 16 crianças de 5/6 anos de idade de ambas as salas pertencentes ao jardim-de-infância. Nestes debates alargados, as crianças partilharam e explanaram brincadeiras, jogos e descobertas realizadas, assim como conflitos que surgiram neste tempo e espaço de recreio, cenário desta investigação. Fizeram ainda parte da investigação registos realizados em conselho de grupo semanal, no qual as crianças puderam partilhar os aspetos de que mais gostavam e de que menos gostavam do recreio.
As reflexões que adiante se fazem sobre as práticas lúdicas das crianças das salas deste jardim-de-infância têm por base as palavras, ações e interações das crianças, e serão integramente ilustradas pelas suas vozes, tal como se propõe desde o início deste artigo. Seguidamente, serão identificadas as brincadeiras e jogos que no recreio estudado foram observadas; a fantasia do real; as interações entre as crianças no recreio do Jardim de Infância; a regulação dos seus jogos e brincadeiras.
3.1. Fantasia do Real
São as brincadeiras e jogos das crianças que identificam este grupo etário como um grupo geracional de culturas identitárias muito próprias, se bem que alicerçadas ou influenciadas pelos contextos em que vivem e pelas relações que vivenciam. Grande parte das brincadeiras das crianças possui características da fantasia do real, como Sarmento (2003) prefere denominar. A criança transpõe o real para a fantasia e a fantasia para o real, defendendo Brougére (1998) que a brincadeira existe num processo de significados e interpretações da ação humana. Segundo Huizinga (1993, citado por Barreto, 2013, p. 132) quando a criança brinca “fica literalmente ‘transportada’ de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem contudo perder inteiramente o sentido da ‘realidade habitual’”. A ludicidade está presente na vida das crianças pois elas brincam continuamente e, como diz Sarmento, “o brincar [é] muito do que as crianças fazem de mais sério” (2004, p. 15). Como continua Barreto, (2013, p. 133), “é brincando que as crianças se apropriam criativamente de formas de ação social tipicamente humanas e de práticas sociais específicas dos grupos aos quais pertencem, aprendendo sobre si mesmas e sobre o mundo em que vivem.” Tal é evidente na seguinte nota de campo:
O Fernando e a Andreia estão sentados no contorno de cimento da relva, voltados para o parque. O Fernando tem nas suas pernas o teclado velho de um computador. O Padrinho passa por ambos e o Fernando explica: “Estamos na festa e vamos assar frangos”. Grita para o lado da relva, onde não está ninguém: “Oh Sr. Paulo, ligue as colunas para eu tocar o piano! (continua, apontando para uma casa que faz uma queimada no quintal, onde se vê o fumo) É ali que estão a assar os frangos, é a Mariquinhas que está a assar.”. O Padrinho segue para escavar no seu buraco e o Fernando fica a fazer de conta que toca piano. O Marco António, que passa com areia no carrinho de mão e o vê a teclar diz: “Isso nem é um piano!...” O Fernando acrescenta com convicção: “Mas é… que eu estou a tocar e a cantar na festa!” Entretanto são horas de arrumar e quando o Fernando vai a entrar para o edifício ainda grita para a casa com fumo: “Oh Mariquinhas, eu já vou comer um frango!”(Nota de campo: 07-11-2012)
Como refere Fantin (2000, p. 75) “as crianças gostam de brincar porque a brincadeira é o melhor instrumento para a satisfação das necessidades que vão surgindo do convívio com o mundo objetivo que tentam conhecer e com o mundo social com o qual se relacionam e, enquanto brincam, esse mundo se amplia”. A mesma autora explica, ainda, que as crianças aprendem através das suas brincadeiras, recorrendo à fantasia, à imaginação e à inteligência. Brougére (1995) refere que as crianças constroem uma cultura identitária da sua geração, não por transporem aquilo que veem e vivenciam, mas porque reinventam essas vivências por meio da apropriação que fazem das suas experiências e interações, nos diferentes espaços sociais das suas vidas. A brincadeira é a ação destas apropriações, é o ícone desta geração. Isto mesmo foi possível observar e compreender com as crianças quando brincam às festas populares e às romarias típicas da região do Minho de Portugal, como o exemplo acima descrito; ou quando organizam bandas de música. As crianças tocam, no recreio, nos baldes que fazem de bombos, retiram as asas aos baldes para colocarem atrás do pescoço, a fazer de microfone sem fios, e colocam baldes na cabaça, como se de chapéus se tratasse.
Através destes apontamentos, podemos verificar como as brincadeiras das crianças sofrem a influência do seu contexto social e como o reinventam com criatividade e imaginação. É, ainda, possível compreender que as crianças, nas suas brincadeiras, assumem de facto papéis que vestem e ações que realizam: “Isso nem é um piano!...” O Fernando acrescenta com convicção: “Mas é… que eu estou a tocar e a cantar na festa!” As culturas da infância suportam-se em grande parte na interação subjacente ao ato de brincar das crianças. Brincar, aprender e socializar estão intrinsecamente ligados, pois ao brincar as crianças aprendem e aprendem fundamentalmente a socialização.
3.1.1. Brincadeiras de luta e de afirmação do poder
As brincadeiras de luta não são senão a fantasia do real, embora com características próprias que as distinguem em alguns aspetos. Kishimoto e Ono (2008) definem estas brincadeiras como as que mais apelam à imaginação e criatividade das crianças, uma vez que vestem uma personagem fictícia, improvisam encenações e atribuem os significados mais convenientes aos espaços e objetos. Kishimoto (2001) defende que as crianças não estão a estimular a violência quando vestem personagens em jogos e brincadeiras de lutas e uso de poder. Entende que exprimem ideias através da expressão oral e corporal, além de terem a oportunidade de protagonizar papéis de movimento e interesse que lhes permitem desenvolver competências de liderança, de iniciativa e resolução de problemas, como podemos compreender no próximo registo:
A Eva diz para a Lara: “Eu sou a Winx e tenho que atacar o Afonso e o Zé-Né. (…) tenho que atacá-los porque eles são monstros que nos querem atacar.” As duas saem a correr e juntam-se ao Yuki e à Catarina. O Yuki diz-lhes: “O Zé-Né está a tentar apanhar-me e atirou-me para o chão e à Catarina.” Saem para a junto da “casa” do Zé-Né e do Afonso e provocam a luta com pás e crivos nas mãos. O Zé-Né vai insistindo: “Mas eu estou na minha casa… Aqui não podemos lutar.” Os três tentam provocá-los, para que saiam e lutem. O Afonso e o Zé-Né vão tirando um pé à frente para lutar, mas sempre fugindo para casa: o muro.(Nota de Campo: 27/11/2012)
Fantin (2000) defende que este tipo de jogo faz parte da imaginação e criação das crianças, tal como em outras brincadeiras em que as crianças experimentam outros papéis sociais (de mãe, bebé, professora, músico, motorista…) que incorporam e recriam para melhor os compreender. Ao recriar estas experiências de violência, fazem-no sem, no entanto, passar pelo sofrimento que passariam se as vivenciassem na vida real. Vejamos o exemplo a seguir:
Em brincadeiras de lutas o Zé-Né empurra o Manuel, o Pedro, o Flávio e o Tiago que se tentam resguardar por baixo do escorrega. O Zé-Né sai, vai embora, então os quatro vão atrás dele e empurram-no devagar, o Zé-Né empurra-os com força. Na confusão todos caem ao chão, mas é uma brincadeira ninguém chora ou reclama. O Flávio vai atrás do Zé-Né empurra-o e foge, o Zé-Né vai atrás dele apanha-o pelo capucho, solta-o e continua a correr atrás dele, o Zé-Né desiste e volta ao Yuki. O Flávio volta a tocar no Zé-Né, ambos lutam. com as mãos e os pés, atiram-se ao chão, sempre que um dos dois sai a correr para regressar a casa, o outro vai atrás iniciando nova luta. Ninguém chora, ou reclama, envolvem-se na brincadeira caindo e levantando-se, divertem-se brincando. (Nota de Campo: 07/01/2013)
As duas crianças que mais se envolveram nesta brincadeira fizeram-no divertindo-se. Esta luta foi uma opção de brincadeira. Esta é uma brincadeira de luta, não uma luta a sério. As crianças compreendem que, embora lutando, ambos se divertem, numa brincadeira de força e movimento.
Nas lutas das crianças muitas vezes estão presentes também as relações de poder. Segundo Foucault (citado por Michel, p. 2011) o poder não é algo de que as pessoas se apoderem ou apropriem, o poder em si não existe, existe sim nas relações e interações com os outros. A nota de campo seguinte é exemplo disso:
Quando chegam ao recreio o Yuki e o António, pegam nos dois carrinhos de mão e vão escavar terra, fazer chocolate. Juntam-se o Tiago, a Catarina, a Mónica e o Zé-Né. Existem dois buracos e as crianças dividem-se em dois grupos. No maior fica o Yuki, o Zé-Né, a Catarina e o António. No mais pequeno ficam a Mónica, o Flávio e o Tiago. Todos produzem chocolate raspando a terra, colocando no crivo, peneiram para os baldes e despejam para os carrinhos de mão. Ouve-se o António: “O mais forte é o Yuki porque é maior!” (…) O Yuki: “Toda a gente diz que eu sou o mais forte!” O Rui: “E és, porque sabes lutar!” A Catarina acrescenta: “Pois é, sabes lutar muito bem!” O Yuki sobe ao muro e agarrando-se à grade diz: “Eu até salto muito alto!” e salta do muro. O Zé-Né tenta subir e o Yuki diz-lhe: “Tu nem consegues…” O Zé-Né desiste e volta ao buraco. O Yuki vai subindo e saltando, tentando saltar cada vez mais alto e a maior distancia. Entretanto aproxima-se o Flávio gritando: “Chocolate!” O Yuki diz-lhe: “Bota ai no meu balde!” O Flávio despeja e volta à labuta no seu buraco. O Yuki continua em cima do muro e diz: “Ninguém consegue saltar e eu consigo! (…) “eu sou o homem mais forte do mundo… Mas sabes que o meu irmão é mais forte do que eu!” Acrescenta um pouco intrigado, sendo que o irmão tem 18 anos de idade. (Nota de Campo: 23/04/2013)
Embora nesta brincadeira não esteja presente a luta física, deparamo-nos com uma brincadeira de luta pelo poder. Deste modo concordamos com Michel (2011, p. 29) ao defender que as lutas de poder estão presentes quando “as crianças trocam, determinam papéis nas brincadeiras, resistem, desafiam umas às outras, organizam grupos ou escolhem líderes”. O Yuki é tratado como o líder pelo Flávio que lhe traz o chocolate. Não só o Yuki se considera o mais forte, como também os outros o entendem como tal. Ao longo da recolha de dados, observamos que existe neste grupo de brincadeira alguma disputa para ser o mais próximo do Yuki, independentemente do género.
Acrescenta-se o episódio seguinte que permite compreender claramente como as crianças distinguem brincadeiras de lutas, de lutas a sério, que envolvem conflito:
Junto ao muro da estrada está o Flávio deitado no chão, o Manuel abana-o e ele diz: “Estou morto, sou o pai”. O grupo é constituído, tal como no dia anterior pelos dois mais a Rita e o Padrinho. Chega o Yuki e o Zé-Né, o Flávio levanta-se e luta com eles dizendo que ali é onde eles estão a brincar. O Yuki e o Zé-Né querem lutar e provocam o Flávio que vem ter comigo e diz: “ O Zé-Né empurrou-me!” O Zé-Né que nos ouve diz: “Mas eu estou a brincar com eles às lutas!...” O Flávio esclarece: “Mas não! Eu estou a brincar com o Manuel e com eles.” Aponta o grupo que continua a brincar junto ao muro. O Zé-Né: “Mas eu e o Yuki queremos brincar às lutas.” Flávio: Mas nós estamos a brincar, não queremos lutar!” O Zé-Né sai a correr com o Yuki pelo recreio e o André regressa ao seu grupo. (Nota de campo: 27/11/2012)
Percebemos como ambas as crianças envolvidas entendem as ações de forma distinta, ou seja, por um lado o Zé-Né sempre esteve a brincar e não empurrou, apenas lutou a brincar e, por outro lado, o André foi empurrado de verdade, porque não estava a brincar às lutas e, como tal, ficou ofendido com a ação do Zé-Né. Em conclusão, nas palavras das crianças diremos que lutar a brincar é divertido mas lutar a sério é um conflito que magoa.
3.2. AS INTERAÇÕES NAS BRINCADEIRAS DO RECREIO
3.2.1. Relações de amizade
Quer ao longo da observação realizada para a investigação, ou posteriormente, na leitura e análise das notas de campo, facilmente se compreende que os jogos e brincadeiras são atos sociais. As crianças interagem, quer manifestando sentimentos de apoio e amizade, quer no envolvimento e resolução de conflitos, na partilha ou não de espaços e materiais, na construção de regras e evidenciando ou não questões de género.
Através das brincadeiras no recreio do JI as crianças desenvolvem relações de amizade. Para Barreto (2013, p. 129) as crianças preferem os amigos “com quem passam mais tempo e desenvolvem mais atividades em conjunto, interessam-se pelas mesmas brincadeiras, pelos mesmos assuntos e identificam-se com os mesmos gostos”. Do mesmo modo, Ferreira (2002) defende que as relações de amizade com as mesmas crianças permitem a continuidade de determinadas brincadeiras. Barreto (2013) acrescenta que as crianças, nas suas interações, como grupo social estruturado, promovem jogos de união e camaradagem, que solidificam os espaços social, afetivo e emocional (Barreto, 2013).
Uma das brincadeiras do recreio, palco da investigação realizada, é a produção de chocolate! As crianças com as pás cavam buracos na terra, colocam no crivo e peneiram para o balde. Esta terra fina é o chocolate (na maior parte das vezes, descobri que por vezes pode ser veneno!). Embora sejam muitas as crianças a realizar esta brincadeira, existem grupos bem definidos neste mesmo espaço, senão vejamos esta conversa do grupo focal:
Yuki: “E porque é que o Marco António e o Fernando vão para aquele buraco grande que é nosso?” Zé-Né: “Porque nós é que fizemos o chocolate. O buraco é do António, meu e do Yuki! Porque fomos nós que escavamos tudo lá!...” Zé-Né: Pois, nós é que fizemos o chocolate!” (…) “Primeiro eu digo assim “Eu não quero que tu brinques!” e eles ainda brincam…” Marco António: “E eu vou para lá e o Yuki diz: Não mexas no meu chocolate!” (…) “Mas eles dizem: Não mexam no meu buraco!” (…) “Mas eles não estão lá, nós vamos para esse buraco fazer chocolate e o Zé-Né diz: Não mexam no chocolate! Diz que o chocolate é deles mas não tem chocolate feito e eles nem estão a fazer chocolate!” (comenta impaciente). (Grupo focal: 07/06/2013)
Nesta
conversa participaram o Marco António, o Fernando, da sala um, e o Yuki, o
António, o Zé-Né, o Gil e a Mónica, da sala dois. Logo aqui as divergências
parecem surgir entre ambas as salas e os
apoios parecem vir das crianças com quem convivem mais frequentemente, inclusive,
dentro da sala. Nitidamente se percebe que as interações entre as crianças de
cada grupo são frequentes e habituais, bem como este conflito entre crianças
das diferentes salas. É também evidente a proteção dada ao Yuki, principalmente
da parte do Zé-Né e do António, companheiros de muitas brincadeiras neste
espaço de recreio. Nesta conversa está presente, também, a ideia de grupo, de
amigos que trabalham para o mesmo fim, com as mesmas brincadeiras e que têm
gostos semelhantes (Ferreira, 2002 e Barreto, 2013). Estas autoras defendem que
as crianças que habitualmente brincam juntas dão continuidade às suas
brincadeiras. Este grupo demonstra-o, ainda, quando se refere ao que mais gosta
de fazer no recreio: António: “Gosto de jogar futebol com o Yuki… Ando de
baloiço com ele e nós cantamos canções dos Caricas.” O Yuki: “E quando
nós não temos bola para jogar e andamos de baloiço e cantamos canções… às vezes
jogamos aos polícias.” Outras brincadeiras aconteceram no recreio que
permitiram confirmar que as crianças através da interação desenvolvem relações
de amizade e dão continuidade às suas brincadeiras, como o jogo das Winx,
inspirado nos desenhos animados, em que as crianças identificam com muita
facilidade os seus parceiros dos jogos e brincadeiras. Aliás, existem crianças
que vestem sempre o mesmo papel, como nos exemplos a seguir: “Eva: Eu sou
sempre a Bloom. Lara: Eu sou sempre a Flora. Eva: e o Sky é o namorado da
Bloom. Eva: e o Paulo é namorado sempre da Lara!”. Com outros companheiros
de brincadeiras: António: O Yuki é o rei e eu e o Zé-né… Zé-Né: É o chefe,
não é o rei… Yuki: sim, sim sou o rei! António: … e nós somos os guardas do
castelo para atacar elas. (Grupo Focal: 28/05/2013).
3.2.2. Relações de conflito
O recreio é o espaço e tempo de brincadeira, prazer e alegria que se vivenciam por meio de interações e nestas não se destacam apenas os relacionamentos de amizade e apoio, mas também os de conflito, de luta pela posse e pelo poder. Chrispino (2007, p. 7) defende que, ao contrário do que os adultos na maior parte das vezes entendem, o conflito é condutor de vantagens para as crianças, uma vez que: i) ensina a ver o mundo pela perspetiva do outro; ii) permite o reconhecimento de diferenças; iii) ajuda a definir as identidades dos envolvidos; iv) racionaliza as estratégias de competência e cooperação; v) ensina que a controvérsia é uma oportunidade de crescimento e de amadurecimento social. Acrescenta, ainda, que o conflito é a manifestação da ordem democrática, resultado da interação entre as pessoas. Na conversa apresentada no grupo focal, sobre a posse dos buracos e a produção de chocolate, facilmente se compreendem estas vantagens.
Das
interações nascem relações e o conflito é uma característica de quem interage,
de quem se relaciona com os outros e manifesta opiniões e sentimentos, de quem
se defende a si e por vezes os outros. As relações de amizade também integram
discussões, disputas e conflitos. Nestas interações, as crianças constroem a
sua identidade e compreendem a diversidade do mundo à sua volta. Algumas notas
apresentadas atrás demonstram relações de conflito que estão de acordo com os
autores referidos. Exemplo disso é o diálogo entre as crianças de diferentes
salas, já aqui apresentado, sobre a posse do buraco do chocolate, ou quando, na
brincadeira das Winx, a Lara quer voar e a Eva não a deixa, e só depois de
ouvir a explicação compreende porque não pode. Alguns conflitos no recreio
surgem da luta pela posse de espaços e matérias, pelas questões de género ou
pela decisão de quem pode brinca ou não. Algumas notas serão apresentadas em
capítulos que se seguem.
Das observações realizadas podemos dar
algum destaque às questões de género que surgem por meio das interações,
momentos de socialização. Segundo Pomar (2008), as diferenças sexuais são
determinadas biológica, psicológica e socialmente. No entanto, esta autora
valoriza a existência de características que nos permitem identificar cada
indivíduo com o género a que pertence, embora com pessoalidades que o
tornam único e diferente de todos os outros. Estas características, únicas a
cada individuo, constroem-se num “processo de aprendizagem sociocultural
desenvolvido a vários níveis do relacionamento social – na família, na escola e
na sociedade em geral (…) um processo construtivo, dinâmico e individualizado”
(Pomar, 2008, p. 1).
Para
Angers (2003) o facto de, desde o nascimento, crianças de diferentes sexos
receberem diferentes formas de tratamento, influencia o modo de agir das
crianças. O autor entende que é através deste tratamento que as crianças
percecionam como atuar em conformidade com o seu género: masculino ou feminino.
Deste modo, “os estereótipos veiculados numa sociedade e o grau de adesão dos
indivíduos mostram que essas representações «prontas a usar», por vezes
caricaturais, que temos de nós próprios ajudam a forjar a nossa identidade e
têm efeitos nos nossos comportamentos.” (Angers, 2003, p. 89).
Pomar (2008, pp. 6-7) acrescenta que a
“variabilidade associada ao género leva-nos a refletir sobre o grande desafio
da sociedade em geral, e da escola em particular, que passa por acomodar e dar
resposta à individualidade no seio da diversidade e da pluralidade, livre de
constrangimentos e de crenças estereotipadas.” Parece que a forma como cada um
de nós assume a sua sexualidade é estruturante na sua identidade pessoal e
social e esta identidade é projetada através das interações que cada um de nós
desenvolve com os outros e com os objetos, numa dimensão sociocultural. Quando
as pessoas se identificam social e culturalmente como sendo do sexo masculino
ou feminino, constroem a sua identidade de género. Segundo Ferreira (2002),
trata-se de uma autoconstrução tanto individual como coletiva e ao
participarmos num dos géneros enformamos determinados sentimentos e
aprendizagens pelo facto de sermos homem ou mulher, masculino ou feminino.
De
acordo com Brougère (1998), diferentes critérios influenciam as culturas
lúdicas como o meio social, a cidade e o sexo das crianças. Para este autor
existem diferenças nas culturas lúdicas femininas e masculinas, embora possam
existir pontos comuns entre ambos, considerando os adultos que vivem com as
crianças responsáveis pelos estereótipos que se constroem em torno dos géneros
masculino e feminino. O autor acrescenta que meninos e meninas podem estar
juntos na mesma brincadeira, mas não do mesmo modo, nem com os mesmos objetos.
Neste sentido parece pertinente observar a seguinte nota de campo:
A
Andreia trouxe de casa, dentro de um saco de papel, uma pequena cozinha de
plástico com utensílios muito pequenos, composta por fogão, panelas, pratos,
talheres e alguns objetos miniatura reaproveitados e que habitualmente vêm a
decorar bolos de aniversário, como conjuntos de balões e bonecos. Trouxe também
a sua bebé. Depois de várias meninas brincarem com ela ao faz de conta, fica
apenas a Andreia e a Joana. Aproxima-se o Cláudio e senta-se junto delas a
observar, a Andreia diz-lhe: “Cláudio, não te empresto! Nós estamos a brincar!”
Joana: “Pois, a tua professora já tirou uma fotografia.” Rui: “Oh professora, a
Andreia não me deixa, diz que é só para meninas, mas não é!” A Andreia responde
rapidamente: “Mas a minha mãe diz que é só para emprestar às meninas.” Eu
pergunto: “Oh Andreia, nunca viste um cozinheiro a trabalhar?” A Andreia
responde baixinho: “vi na televisão…” Nesse mesmo momento está a passar o Yuki
e a Andreia continua: “Pronto, o Yuki pode!” O Yuki continua a andar e olhando
para trás diz: “Eu não quero!...” Prontamente a Andreia acrescenta: “então é o
Cláudio!” O Cláudio para ambas: “Dá-me a colher pequena!” Com ela enche um
minúsculo carrinho de mão que se encontrava entre os utensílios levanta-se e
anda com ele sobre o muro. (Nota de campo: 13-11-2012) O
Cláudio ainda estava a observar e a Andreia informou-o de que ele não podia
brincar. A primeira razão apontada foi a de que as meninas já estavam a
brincar, dando a sensação de que o material poderia não ser suficiente para
mais ninguém. No entanto, a Andreia parece estar a construir e a manter a sua
identidade de género como defende Ferreira (2002). Quando o Cláudio acrescenta:
“diz que é só para meninas, mas não é!” Este menino parece entender que
neste espaço, socialmente atribuído ao género feminino, também cabe o
masculino. Porém, quando é admitida a sua presença, o menino enche um
minúsculo carrinho de mão que se encontrava entre os utensílios e vai andar com
ele sobre o muro, sem fazer qualquer tipo de interação com a brincadeira de
faz de conta em que as meninas estão envolvidas. Deste modo, o Cláudio, embora
com o empréstimo de material da Andreia, que parecia dedicado apenas a tarefas
domésticas, tipicamente femininas, acaba por se envolver numa ação demarcada
socialmente para o género masculino, como conduzir o carro de mão, encher e
despejar o mesmo.
Tal
como refere Brougère (1995) a escolha dos brinquedos e brincadeiras segundo o
sexo e o género remete as meninas para o universo da casa e da família e os
meninos para os “carrinhos” e para o mundo do trabalho. Também Thorne (1993, citado
por Pomar, 2008), acentua esta ideia ao anunciar que as raparigas, no jogo do
faz de conta, preferem vestir o papel associado às tarefas domésticas, à
família, ou a atividades profissionais, enquanto que os rapazes têm preferência
por papéis relacionados com a aventura, associados à fantasia, ao poder e com
uma boa dose de atividade física. Analisemos a seguinte nota de campo:
O
Yuki sobe o muro e bate nas grades com a pá. O Zé-Né com as pás batuca nos
baldes. Aproximam-se deles a Susana, a Catarina e a Mónica. Susana: “Olha o
Yuki é o meu marido!” Mónica dirigindo-se a mim: “ Eles não me deixam brincar!”
Zé-Né: “Isto não é trabalho para meninas, porque nós não queremos.” Susana:
“Mas eu vou!” Zé-Né: “Só tu, mais ninguém!” Eu pergunto porque pode entrar na
brincadeira apenas a Susana. Zé-Né: “Porque é a namorada do Yuki e elas
estragam tudo.” Mónica: “Eu não estrago.” Zé-Né: “Então podes, mas não estragas
nada.” (Nota de campo: 15/02/2013) Aqui
é denunciado o poder de que é detentor o Zé-Né ao deixar ou não as meninas
brincar “porque nós não queremos! “e ainda, o modo como distingue o trabalho
dirigido ao género masculino que exclui a presença do género feminino, sendo
exceção a namorada do Yuki. Parece, tal como Ferreira (2002, p. 412) refere,
que “têm noção de que há espaços, objetos, actividades “próprias” para meninas
e para meninos” e é nas relações e interações do brincar, do faz de conta, que
constroem esta identidade como elementos que pertencem a um determinado género
e é nestes grupos de pares que constroem conhecimento sobre estes mesmos grupos
de género. De acordo com Ferreira (2002, p. 317), estas “relações de
heterossocialidade” que se realizam nos espaços das crianças dão origem a
“guerras e pazes que refletem os seus poderes relativos a apreender a dominância,
ou não, de uma ordem de género sobre outra.” Ferreira (2002, p. 482) afirma que
“as crianças não assumem posições de género por inerência biológica, mas
através de práticas sociais de género inseridas dentro dos próprios processos
que as constroem…” Quando o Zé-Né identifica a sua atividade como tipicamente
masculina ao afirmar “Isto não é trabalho para meninas…”, parece que à
sua volta existe uma distinção clara do que são tarefas masculinas e femininas.
Nas
culturas da infância podemos observar ações identitárias desta geração como o
facto de estabelecerem regras para as suas brincadeiras, nomeadamente, ao
designarem os amigos com quem brincam, e ao identificarem com quem não brincam,
quando defendem o espaço das suas brincadeiras, na partilha de rituais, na
construção de estratégias para não fazerem o que não querem ou quando, através
de habilidades, contornam as regras dos adultos (Sarmento, 2004).
Para
Vygotsky (1991) não existe brincadeira sem regra. As crianças conseguem brincar
tanto com o que é realmente verdadeiro, como com situações imaginadas. Ao
brincar ao faz de conta, as crianças tentam ser o que pensam ser na realidade o
papel que estão a interpretar, logo convocam regras de comportamento. Entende
que as crianças constroem regras sempre que brincam com situações imaginárias e
que essas regras têm origem nessas mesmas situações, ao contrário dos jogos que
têm regras estabelecidas previamente. Borba (2007) acrescenta que é na
interação e na participação nas brincadeiras que as crianças se apropriam das
rotinas, das regras e dos espaços representativos que caracterizam e distinguem
os diferentes grupos sociais.
As
crianças ao brincarem estabelecem regras, tomam decisões, alteram significados
dos objetos e das ações. Como refere Brougère (1998), as crianças transformam o
sentido da realidade, nas suas brincadeiras as coisas transformam-se em outras
mais convenientes e apropriadas às suas intenções. É um espaço à margem da vida
comum que obedece a regras criadas pelas circunstâncias, como podemos constatar
no jogo de futebol que jogam no recreio deste jardim-de-infância. O espaço onde
jogam, além de inclinado na parte superior, termina num bico, então as crianças
jogam apenas com uma baliza na parte de baixo e organizam-se jogando todos
neste sentido. A bola é pontapeada para cima pelo guarda-redes e o sentido do
jogo decorre no sentido da descida. Vejamos a seguinte nota de campo:
O
Pedro e o Cláudio marcam golo. O Adérito, o guarda-redes, grita: “Não é golo!
Foi fora!” Enquanto vai riscando a baliza no chão com o pé, desenhando o traço
de modo que a bola não tivesse passado dentro e pontapeia a bola para cima. O
António marca golo, o Adérito, enquanto vai buscar a bola diz: “Não foi, não
foi…” E volta a chutar a bola para longe da baliza. Eu aproximo-me e
pergunto-lhe: “Então Adérito, quem é da tua equipa?” Espontaneamente responde,
espreitando para mim e olhando logo para o jogo: “Ninguém! Eu sou o
guarda-redes!” Estas palavras foram-me dirigidas como se eu não percebesse nada
de futebol e a verdade é que deste futebol eu pouco sabia. O António, que ouviu
a pergunta, acrescentou, correndo para a bola: “Nós só estamos a treinar!”
Entretanto ouve-se o Pedro: “É canto, o guarda-redes atirou para fora é canto!”
Mas ninguém lhe dá ouvidos e o guarda-redes atira a bola para a frente. O grupo
corre para a bola e cada um tenta apanhá-la para atirar à baliza. O Pedro marca
golo e o António grita “Golo! Estamos a ganhar 5-1, é Portugal que está a
ganhar.” Ao que o guarda-redes informa: “Eu é que sou o guarda-redes de
Portugal!” (Nota de campo: 15-04-2013) Podemos
perceber que as circunstâncias do campo de jogo levaram as crianças a
reinventarem uma forma diferente de jogar futebol. Parece haver duas equipas: a
do guarda-redes e a dos jogadores que vão marcando golos numa única baliza. As
crianças entendem-se neste jogo aproveitando algumas regras predeterminadas e
adicionando aquelas que construíram no decorrer desta convivência, regras essas
que lhes permitem jogar apenas com uma baliza e com todas as alterações que daí
advêm. Este exemplo evidencia não só o modo como as crianças constroem regras
nas suas brincadeiras e jogos, mas também como são os atores e autores da
cultura que os identifica. Tal como refere Brougére (1998), as regras, os
esquemas das brincadeiras e as suas rotinas permitem que as crianças brinquem
juntas e traduzam a sua cultura lúdica. Relativamente a este aspeto, Borba
(2007) defende que as crianças, nas suas brincadeiras, constituem-se como
indivíduos com experiência social, que organizam com autonomia as suas ações, que
regulam as suas interações e, deste modo, se apresentam como autores das suas
práticas sociais e culturais.
Segundo
Pontes e Magalhães (2002) as regras construídas pelas crianças nas brincadeiras
e jogos têm como finalidade regular os seus comportamentos e/ou criar
estratégias que permitam o desencadear do jogo. O excerto da nota de campo que
a seguir apresentamos merece a atenção nesta abordagem:
No
cimento, junto a uma das mesas está a Eva, a Catarina e a Liliana. A Eva
explica à Liliana: “Este é o consultório, a Catarina é a médica e eu sou a
enfermeira, tu podes ser a senhora que diz aos doentes para entrar.” A
primeira doente a aparecer no consultório foi a Fernanda. Veio pela mão da Catarina
que a foi buscar à areia, informando à chegada: “A Fernanda está doente!” A Eva
observa o rosto, os olhos… Catarina: “eu é que sou a médica, eu é que vejo!”
Eva: “Não, a enfermeira é que vê!” A Catarina aproxima-se da folha de papel
onde escreveu FERNANDA e pergunta: “O que é que te dói?” Fernanda: “Nada!” Eva:
“Mas é só a fazer de conta…dói-te a barriga?” Fernanda: “Não!” Eva: “É só a
brincar…” A Fernanda volta-se para se ir embora. Eva: “Espera Fernanda, nas
costas está tudo bem, mas tens uma infeção na barriga, só que é lá dentro.” A
Catarina faz de conta que escreve soletrando: “in-fe-ção na ba-rri-ga” e
acrescenta: “Deixa ouvir o teu coração” (…) (Nota de campo:
04-02-2014) Antes
de iniciarem a brincadeira, a Eva estabelece regras que possibilitam o
desenvolvimento da brincadeira, definindo espaços: “Este é o consultório” e atribuindo
papeis: “a Catarina é a médica e eu sou a enfermeira, tu podes ser a senhora
que diz aos doentes para entrar.” Logo de seguida, percebemos que a
definição dos papéis da médica e da enfermeira não está esclarecida, mas
rapidamente resolvem o problema. As crianças estabelecem as regras que permitem
a operacionalização dos jogos e das brincadeiras que querem levar a cabo, tal
como refere Borba, as crianças planeiam e organizam as suas brincadeiras “com
intenção de definir e negociar papeis, turnos de participação, cenários,
regras, ações, significados e conflitos” (2007, p. 38).
Vygotsky
(1991) refere que na brincadeira as regras transformam-se em desejos,
entendendo o autor que o prazer das crianças na brincadeira se encontra na
satisfação das regras. Segundo este autor, a brincadeira “ensina-a a desejar,
relacionando seus desejos a um eu fictício, ao seu papel no jogo e suas regras”
(1991, p. 67).
Borba
(2007) acrescenta que, nas brincadeiras, os modos de comunicar implicam novas
regras e limites que os tornam característicos e os distinguem da comunicação
habitual. Para a autora, no jogo de faz de conta “as situações e as regras são
estabelecidas pelos significados imaginados e criados nas interações entre
crianças” (2007, p. 38). Parece pertinente analisar o próximo excerto, em que a
Lara, no conselho de grupo, descreve o que mais gostou de fazer ao longo da
semana:
Lara:
“Eu também era uma cadela, era a Kitty. Eu estava sempre a passear e encontrei
o Zé-Né e ele estava sempre a fazer de mau para mim. Queria-me tentar apanhar e
não sei porque estava sempre a tentar apanhar-me…”Eu: “Não lhe perguntaste?”
Lara: “Não! Porque eu não podia falar, só podia ladrar.” (Conselho de Grupo:
30/11/2012) Percebemos
que a Lara sendo a cadela, assumiu o papel deste animal e enquanto tal “não
podia falar, só podia ladrar”. Esta regra surgiu nesta brincadeira, na
interação com os outros.
Analisemos ainda o seguinte exemplo:
A
Lara vem ter comigo: “Oh Professora a Eva disse que eu não podia voar, que eu
não tinha asas!...” A Eva logo atrás da Lara esclarece: “Porque ela não pediu e
eu é que mando, porque fui eu que inventei este jogo e eu é que tenho asas.”
Sem esperar qualquer comentário meu retiram-se e continuam a brincar. (Nota
de Campo: 27-11-2012) Parece
que a Lara não tinha percebido a razão de não ter asas, mas logo que a Eva
explicou qual a regra que a impedia de voar, a Lara voltou à brincadeira e,
embora não pudesse voar, a verdade é que eu a observei a “bater as asas”, lado
a lado com a Eva. De acordo com Brougère (1998) existe cultura lúdica quando as
crianças atribuem significados e regras a um determinado jogo ou brincadeira.
Segundo
Corsaro (2011), grupos estáveis de crianças têm tendência para rejeitar as que
não fazem parte do grupo. Quando as crianças se recusam a partilhar as suas
brincadeiras com outras crianças, estão a defender o seu espaço de brincadeira
e a proteger o seu jogo. No entanto, as crianças que são rejeitadas por outras,
para entrar na brincadeira, habitualmente são persistentes e diversificam
estratégias até serem aceites.
A
Rita enche um balde com pás e sai, dá uma volta e quando regressa pergunta
alto: “Quem quer as prendas?” Todos gritam: “Eu! Iéééé!” Chega o Tiago ao muro
onde brinca o grupo de crianças, o Manuel diz: “Sai, tu não és daqui!” O Tiago
não insiste, embora fique por algum tempo a observar o que fazem, mas logo se
intrusa com outras crianças a jogar futebol. (Nota de campo:
27-11-2012) O
Tiago é uma criança que não brinca habitualmente com este grupo de crianças. Este,
por sua vez, rejeita-o. Deste modo ilustra-se o que defende Corsaro (2002), ao
referir que as crianças que constituem grupos estáveis de brincadeiras tendem a
excluir outras que tentam participar ou incluir-se nas suas ações.
De
acordo com Rasmussen (2004), existem os lugares para crianças e os lugares
de crianças. Os primeiros são pensados e construídos por adultos para as
crianças, deixando antever a imagem que têm da criança e das suas brincadeiras;
os segundos são lugares repletos de significações para as crianças por serem os
projetados ou escolhidos por si, onde as suas brincadeiras, por meio das
interações com os outros, acontecem. Nestes, as crianças desenvolvem relações
significativas com os outros e evidenciam a sua conduta como atores e co
construtores das suas vidas.
Segundo
este autor os lugares das crianças e os lugares para as crianças podem
ser semelhantes ou completamente díspares. Muitas vezes as crianças precisam ou
procuram lugares diferentes dos que os adultos lhes atribuem. Neste sentido, ao
longo da recolha de dados, vários foram os lugares das crianças, como a
mesa redonda, que tanto foi “consultório”, como “casa” ou “salão de festas”; o
fundo do escorrega, onde aconteceram algumas brincadeiras de faz de conta e que
serviu para diferentes finalidades, como a “Festa da Malafaia”, o “Restaurante”,
o “Baile de Natal” e outras brincadeiras e jogos que aqui se realizaram.
As
crianças transformam os espaços de modo a que se adequem às suas brincadeiras,
do mesmo modo que transformam ou criam diferentes identidades para os objetos
ou brinquedos que utilizam. Como refere Corsaro (2011), as crianças
apropriam-se dos brinquedos, coletiva e criativamente, podendo atribuir-lhes
significados necessários para a brincadeira a realizar.
Certifica-se
de algum modo a ideia de Brougère (1995) de que as crianças quando brincam
transformam o sentido da realidade. Os objetos não são muitas das vezes aquilo
que se vê, mas aquilo que é necessário ser para aquela brincadeira acontecer.
As regras e os significados são ditados pelas circunstâncias, sem qualquer
identidade com a vida.
Aliás,
Ribeiro (2005, citado por Barreto 2013, p. 175) argumenta que as crianças podem
“representar mentalmente um objeto, ou situação ausente, e torná-lo presente
por meio da ficção, valendo-se de outros objetos ou ações.” De acordo com
Fantin (2000), a um objeto, as crianças podem atribuir diferentes significados,
podem, portanto, fazer-lhe corresponder diferentes objetos. As crianças nas
suas brincadeiras manipulam e ressignificam materiais, espaços e papéis. O próximo
episódio vai ao encontro do que estes autores defendem:
Um
grupo de crianças faz uma festa por baixo do escorrega. O Marco António diz
para todos os outros: “Vou lá em cima ligar as luzes.” Sobe o escorrega e faz
de conta que liga o interruptor.” Em baixo, o Yuki
faz o gesto de chapar massa nas paredes, atirando areia. Depois vai apanhar
folhas com o carrinho de mão e quando regressa diz: “Vou limpar o salão!” Sobe
a um balde, virado ao contrário, e com as folhas vai limpando o teto.
Entretanto o Marco António chega com outro carrinho de mão com areia e diz:
“Chegou a areia, pega Padrinho!” Despeja e volta para outro lado do recreio
encher novamente. Chega o Daniel com um carrinho betoneira (coloca um carrinho
de mão em cima do outro, com as rodas para cima e girando a roda da frente diz
que é a betoneira a fazer cimento): “Trouxe a batoneira para o cimento.” O
Marco António e o Yuki dão o muro por terminado. Yuki: “Agora temos de pintar!”
O Lino e o Manuel pintam subindo aos baldes, bem como o Marco António que vai
explicando, enquanto aponta para a cor da madeira: “Antes estava doutra cor,
agora é desta. (falando mais alto) Cuidado com a tinta!” O Yuki, enche um balde
de areia, sobe para outro e diz: “Saiam, que vai cair tinta!” Os outros
desviam-se e depois voltam e continuam a pintar. O Armando descendo o escorrega
aproxima-se do grupo dizendo: “Já pintamos tudo: as escadas e lá em cima!” O
Marco António coloca um carrinho de mão em cima de outro e diz: “Olha Yuki,
isto é a betoneira. Mete-se o cimento, poe-se a roda a andar e fica pronto.”
São horas de arrumar! (Nota de campo: 16-11-2012) Neste
episódio, como em muitos do jogo de faz de conta, os objetos vão-se
transformando naqueles que a ação requer. O Marco António liga o interruptor
imaginado por si, a areia transforma-se em cimento e depois em tinta, conforme
a conveniência da ação, as folhas das árvores passam a panos de limpeza, o
amontoado de areia é a parede do salão da festa e os carrinhos de mão são agora
a betoneira.
Assim
podemos constatar que as crianças estabelecem regras nos seus jogos e
brincadeiras. O contexto, as circunstâncias, os saberes, as interações, o
espaço e os materiais ditam as regras necessárias para as suas brincadeiras.
Estas regras são fundamentais para que as brincadeiras aconteçam e se
desenvolvam; sem elas as crianças viveriam num caos que impossibilitaria as
interações e sem estas, brincar, como sinónimo de prazer, seria impossível de
acontecer.
Nesta
investigação ficou também a reflexão sobre a importância deste espaço na vida
das crianças, num dia-a-dia de uma vida enclausurada em casa e na escola onde
escasseiam momentos e companheiros de brincadeiras. Deste modo, o recreio deve
surgir como o espaço das e para as crianças, onde o adulto deve ser o menos
invasivo possível de modo a facilitar a construção das culturas da infância. Estes
adultos, responsáveis pelos recreios das crianças, deverão estar atentos,
diariamente, aos lugares onde as crianças escolhem brincar; aos tempos nos
quais as crianças brincam; às formas que assumem as suas atividades lúdicas; aos
instrumentos, materiais ou brinquedos com os quais as crianças escolhem
brincar; e, por último, aos companheiros com os quais as crianças escolhem
brincar.
No
respeito e promoção do direito da criança brincar, a construção do espaço-tempo
do recreio no jardim-de-infância e o desenvolvimento das próprias atividades de
recreação deve basear-se na auscultação das crianças que o frequentam, e embora
a estruturação do brincar seja responsabilidade dos adultos, não pode alhear-se
das formas como as crianças escolhem brincar e que estão sempre profundamente
de acordo com as suas idades, interesses e necessidades. Para o sucesso desta
abordagem é necessário que os adultos educadores se mantenham de olhar e escuta
permanentes de modo a (re)conhecer as culturas lúdicas infantis para as
expandir e consolidar construindo tempos e espaços que proporcionem as
brincadeiras que as crianças escolhem e preferem, efetivamente, brincar.
É
assim que se conclui, tal como expresso no título deste artigo, que o recreio jardim-de-infância surge na atualidade como um dos últimos redutos da brincadeira - uma fortaleza dentro da fortaleza que já constitui o JI -, os adultos educadores surgem como
os guardiões dos tempos lúdicos e as crianças são reconhecidas enquanto
herdeiros e (re)criadores das culturas da infância: nomeadamente das suas
práticas lúdicas. Para isso, voltando ao início deste artigo, há que assumir as
crianças como cidadãos participantes e contributivos nas sociedades, ouvindo-as
e dando-lhes voz sobre as questões que dizem respeito às suas vidas quotidianas
e nas quais se inclui a brincadeira.
Entende-se
que o espaço-tempo de recreio, assim considerado, materializa a construção das
culturas da infância, garantindo a sobrevivência da ludicidade e da própria
Infância. Resta o apelo aos guardiões desta fortaleza para que não baixem as
armas na sua defesa.
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3.2.3. As interações e as questões de género
3.3. REGULAÇÃO DE BRINCADEIRAS
3.3.1. Espaços e materiais nas brincadeiras do recreio
CONCLUSÕES
Ao longo deste artigo percebemos, através do protagonismo das crianças como atores
sociais, como se revelam as especificidades das suas culturas e aí encontramos
o brincar, os brinquedos e as brincadeiras como expressões lúdicas tipicamente
infantis. As culturas da infância radicam na cultura dos adultos e dela fazem
parte, mas apresentam características diferenciadoras exprimindo-se através da
realização de atividades partilhadas e de rituais que incorporam a fantasia, o
jogo e o brincar na realidade: as crianças inventam e reinventam brincadeiras,
de acordo com as suas vivências e experiências sociais e aos espaços e
materiais, nessas brincadeiras, podem ser atribuídos diferentes significados,
conforme a necessidade de dar continuidade às mesmas ou para que se possam
realizar. Compreendemos ainda que as crianças constroem e seguem regras para
brincar, mesmo quando aos olhos do adulto o caos parece instalado.
REFERÊNCIAS
Legislação Consultada:
Contacto: Olga Azevedo, Instituto de Educação, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal / azevedoolga159@gmail.com
(recebido em setembro de 2015, aceite para publicação em dezembro 2015)
NOTAS
[1]Título
da investigação: “Chegou a hora do recreio! O recreio: espaço de construção de culturas
da infância” - realizada no âmbito do Mestrado em Estudos da Criança, área de
especialização em Associativismo e Animação Sociocultural, no Instituto de
Educação da Universidade do Minho, sob a orientação de Natália Fernandes.
Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/35913