ARTIGOS

DOI: https://doi.org/10.25757/invep.v10i2.223

 

Conceções sobre as noções de justiça e de tribunal em crianças dos 6 aos 10 anos: a voz das crianças

 

Conceptions on the notions of justice and court in children from 6 to 10 years: the voice of children

 

Conceptions sur les notions de justice et cour des enfants de 6 à 10 ans: la voix des enfants

 

Concepciones sobre las nociones de justicia y tribunal de niños de 6 a 10 años: la voz de los niños

 

Maria José D. MartinsI; Ana Margarida Veiga SimãoII e Beatriz EstevãoIII

I, VALORIZA – Centro de Investigação para a Valorização dos Recursos Endógenos; Instituto Politécnico de Portalegre

II UIDEF – IEUL, Instituto de Educação, Universidade de Lisboa

III CCPSI, Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa

IV Instituto Politécnico de Portalegre

Contacto

 


Resumo

A maioria dos países europeus, incluindo Portugal, considera a educação para a cidadania uma componente curricular obrigatória associada à democracia e à justiça social. A convenção dos direitos da criança e a legislação portuguesa admitem a audição da criança em procedimentos civis e criminais no tribunal. Assim, esta investigação teve como finalidade compreender quais as conceções que as crianças têm dos conceitos de justiça e de tribunal e a sua evolução dos  6 aos 10 anos. Entrevistaram-se 146 crianças a frequentar o 1.º Ciclo do Ensino Básico. A  maioria das crianças do 1.º e 2.º ano não foi capaz de definir esses conceitos; as do 3.º e 4.º ano equacionam a justiça apenas como retributiva e o tribunal como local de punição dos que praticam crimes. Os resultados são discutidos em termos das implicações para a educação para a cidadania na escola e da participação da criança nos vários contextos em que se move, nomeadamente a possibilidade de ser ouvida em tribunal.

Palavras chave: crianças, justiça, tribunal, cidadania.

 

Abstract

Most European countries, including Portugal, consider education for citizenship to be a mandatory curricular component associated with democracy and social justice. The Convention on the rights of the child and Portuguese law allow the hearing of the child in civil and criminal proceedings in court. Thus, this research aimed to understand what the children’s conceptions about justice and court and their evolution from 6 to 10 years old. 146 children attending a primary school were interviewed. The majority of children in the 1st and 2nd grades considers justice as retributive and court as a place of punishment for those who commit crimes. The results are discussed in terms of the implications for citizenship education at school and the child’s participation in in the several settings of their lives, namely the possibility to be heard in court.

Keywords: children, justice, court, citizenship.

 

Résumé

La plupart des pays européens, dont le Portugal, considèrent l'éducation à la citoyenneté comme une composante obligatoire du programme d'études associée à la démocratie et à la justice sociale. La Convention relative aux droits de l'enfant et la loi portugaise autorisent l'audition de l'enfant dans les procédures civiles et pénales devant les tribunaux. Ainsi, cette enquête visait à comprendre ce que les enfants comprennent sur les concepts de justice et de cour et leur évolution de 6 à 10 ans. 146 enfants ont été interrogés lors du 1er cycle de l'enseignement primaire. La plupart des enfants des 1re et 2e années n'étaient pas en mesure de définir ces concepts; ceux des 3e et 4e années ont assimilé la justice comme punitive et le tribunal comme lieu de punition pour ceux qui commettent des délits. Les résultats sont discutés en termes d'implications pour l'éducation à la citoyenneté à l'école et la participation de l'enfant dans les différents contextes de sa vie, nominativement la possibilité d’être écoutée au tribunal.

Mots-clés: enfants, justice, cour, citoyenneté.

 

Resumen

La mayoría de los países europeos, incluido Portugal, consideran que la educación para la ciudadanía es un componente curricular obligatorio asociado con la democracia y la justicia social. La Convención sobre los Derechos del Niño y la ley portuguesa permiten la audiencia del niño en los procesos civiles y penales en los tribunales. Así, esta investigación tuvo como objetivo comprender cuáles son las nociones de los niños sobre los conceptos de justicia y corte y su evolución desde los 6 hasta los 10 años. Se entrevistó a 146 niños que asistieron al primer ciclo de educación básica. La mayoría de los niños de 1º y 2º grado no pudieron definir estos conceptos; aquellos en los grados tercero y cuarto equiparan la justicia como retributiva y la corte como un lugar de castigo para aquellos que cometen delitos. Los resultados se discuten en términos de las implicaciones para la educación para la ciudadanía en la escuela y la participación del niño en diversos contextos, nominalmente la possibilité de ser escuchado en la corte.

Palabras clave: niños, justicia, corte, ciudadanía.

 

INTRODUÇÃO

A aprovação da Declaração Universal dos Direitos das Crianças em 1959 e posteriormente a Convenção dos Direitos das Crianças em 1989 consideram que a criança é um sujeito de direitos e que um deles é o direito à participação em todos os assuntos que lhe respeitem. Estes documentos contribuíram para impulsionar os Estados membros a ratificarem estes princípios e a definirem estratégias nacionais que permitam a sua implementação.

Assim, o reconhecimento da criança como sujeito de direitos levou o Conselho da Europa a recomendar um conjunto de diretrizes sobre as estratégias nacionais de proteção da criança contra a violência e de promoção dos seus direitos, no qual define cinco áreas prioritárias para a garantia dos direitos das crianças: a igualdade de oportunidades para todas; a possibilidade de participação em tudo o que lhes respeite; uma vida livre de violência; uma justiça amiga da criança para todas as crianças; e a garantia de direitos no ambiente digital (Conselho da Europa, 2016; s/d; EURYDICE, 2016; UNESCO, 2016; UNICEF, 1989).

No que se refere em particular ao direito da criança a participar, o Conselho da Europa recomenda que se escutem e respeitem as opiniões das crianças nos vários contextos em que esta se move: na família, na escola, na comunidade, e em particular no contexto judicial. A participação da criança na tomada de decisões familiares, escolares, sociais e políticas é essencial para a concretização dos seus direitos. Nesta linha de ideias vários autores têm vindo a enfatizar a importância de dar voz e oportunidades de participação à criança no que respeita a questões de educação e investigação (Oliveira-Formosinho & Formosinho, 2017; Sarmento, Fernandes, & Tomás, 2007); em aspetos sociais e políticos (Carvalho &  Silva, 2016; Menezes & Ferreira, 2014; Tironi, 2017; Tomás, 2007) e ainda em matéria judicial (Agulhas & Alexandre, 2017; Castro, 2020; Melo & Sani, 2019).

A maior parte dos países europeus, incluindo Portugal, sugere que a educação para uma cidadania ativa, que enfatiza a responsabilidade individual e coletiva, que promova a autonomia e o pensamento crítico no âmbito dos direitos humanos, deve constituir uma componente obrigatória dos sistemas educativos europeus e pode contribuir para que a criança aprenda a participar de forma eficaz na comunidade onde se insere (Eurydice, 2017; Martins & Mogarro, 2010; Monteiro, 2017).

A UNESCO (2016) propõe mesmo uma educação para a cidadania global, a qual envolveria três dimensões conceituais básicas: cognitiva, que se refere à «aquisição de conhecimento, compreensão e pensamento crítico sobre questões globais, regionais, nacionais e locais, bem como sobre as inter-relações e a interdependência dos diferentes países e grupos populacionais; socioemocional, que remete para o sentimento de pertencer a uma humanidade comum, que partilha valores, responsabilidades, empatia, solidariedade e respeito às diferenças e à diversidade; e comportamental, relativa a uma atuação efetiva e responsável, em âmbito local, nacional e global, por um mundo mais pacífico e sustentável» (UNESCO, 2016, p.15).

A educação para a cidadania democrática está frequentemente associada às noções de justiça social e de igualdade de oportunidades. Isto implica que todas as pessoas teriam direito e deveriam receber a sua justa parcela de benefícios e que aqueles que cometem infrações ou crimes deveriam receber uma justa parcela de penalização. Estas duas formas de justiça são usualmente designadas por justiça distributiva e justiça retributiva, as quais tentam respetivamente responder às seguintes questões: Como alocar os recursos disponíveis? Como punir ou corrigir os infratores? O modo como se responde a estas questões varia consoante o contexto social, a ideologia política, e vai-se transformando também ao longo do desenvolvimento da criança, refletindo alterações no seu raciocínio moral (Piaget, 1932; Rawls, 1971; Smith & Warneken, 2016).

Nesta linha de ideias, a Convenção dos Direitos da Criança e a legislação portuguesa admitem a audição da criança em tribunal, no âmbito de processos penais, como vítima, agressora ou testemunha, ou no âmbito de processos cíveis, como por exemplo no âmbito da regulação de responsabilidades parentais. O modo como as crianças representam e compreendem o sistema de justiça, assim como o grau de compreensão e conhecimento que detêm sobre o mesmo, podem condicionar a sua participação plena no processo judicial (Agulhas & Alexandre, 2017; Melo & Sani, 2019; UNICEF, 1989).

Piaget (1932) propôs a conceptualização de dois tipos de justiça e proporcionou evidência de que a forma como as crianças raciocinavam sobre estes dois tipos de justiça se transformava com a idade e estava intrinsecamente associada ao processo de desenvolvimento moral da criança. Os dois tipos de justiça considerados são a justiça distributiva, que prescreve como devem ser distribuídos os recursos e os benefícios, e a justiça retributiva, que prescreve como devem ser penalizados ou corrigidos os infratores. O autor sugere ainda que o processo de desenvolvimento evolui da heteronomia moral, baseada na obediência e respeito à autoridade, para a autonomia moral, que se baseia na reciprocidade e no respeito mútuo, e que essa transição ocorre por volta dos 9 anos de idade. No caso da justiça distributiva, o raciocínio evoluiria de considerações que prescrevem o que a autoridade dita como a forma mais justa de distribuição, passando em seguida pela igualdade estrita até à equidade (dar mais a quem mais precisa ou merece para garantir a igualdade). No caso da justiça retributiva, o raciocínio evoluiria de raciocínios que prescrevem punições retaliatórias, expiatórias e arbitrárias para sanções mais reparadoras das infrações cometidas (Piaget, 1932).

Estas duas conceções de justiça mantêm a sua pertinência, tendo sido objeto de estudos mais recentes (e.g., Menin, Bataglia, & Moro, 2013) que sugerem que, globalmente, a tendência de desenvolvimento descrita se tem verificado em várias investigações em diferentes contextos. Assim, Queiroz, Ortega, e Queiroz (2017) verificaram que as tendências desenvolvimentistas se mantêm quando se avaliam crianças em situação de risco social. Vários autores (Camino, Galvao, Barbosa, & Sampaio, 2017; Menin, Bataglia, & Moro, 2013) verificaram que, no respeita à justiça distributiva, a tendência desenvolvimentista se mantém mas a perspetiva igualitária surge mais cedo nas crianças do que o modelo Piagetiano faria prever, e sugere ainda que fatores contextuais podem também influenciar a resposta das crianças (no caso de doação de comida a proximidade entre doador e recetor influenciava a dádiva, mediando os processos desenvolvimentistas inerentes à justiça distributiva).

Smith e Warneken (2016), num estudo que incluía três grupos de crianças: de 4-5 anos; de 6/7 anos e de 8/10 anos e ainda um grupo de adultos, pretendiam testar a hipótese de que a justiça distributiva e a justiça retributiva seguiam um caminho paralelo em termos do desenvolvimento da criança. Os resultados permitiram constatar que, em termos de justiça distributiva e retributiva, as crianças mais novas preferiam distribuições igualitárias, quer de recompensas quer de consequências aversivas, e que as crianças mais velhas e os adultos preferiam situações que alocavam recursos baseados no mérito, sugerindo um paralelismo no desenvolvimento dos dois tipos de justiça. Contudo, os mais novos consideravam as recompensas e as punições coletivas como mais justas que os mais velhos. Os resultados deste estudo evidenciaram ainda que a noção de mérito influenciava as noções de justiça distributiva e retributiva, no sentido de que nos juízos morais sobre punição coletiva de situações de disciplina, os participantes de todas as idades se focavam mais no merecimento comparativamente aos casos de recompensa coletiva. Com a idade as respostas dos participantes seguiam uma tendência de desenvolvimento da igualdade para a equidade (Smith & Warneken, 2016).

Alguns autores (Fronius, Persson, Guckenburg, Hurley, & Petrosino, 2016) sugerem ainda que o conceito de justiça retributiva pode evoluir no sentido de se transformar em justiça restaurativa, que constitui uma forma inovadora de encarar o comportamento desviante ou infrator, e que enfatiza a reparação do dano praticado por comparação à mera punição, acentuando a necessidade de construir relações reparadoras e positivas entre as várias partes envolvidas nos delitos.

De um modo geral, os estudos sobre esta temática partem de narrativas ou histórias nos quais se avalia o raciocínio da criança sobre situações concretas de justiça distributiva ou retributiva, mas não se identificam estudos que incidam sobre o modo como as crianças compreendem e/ou definem os conceitos propriamente ditos. Assim, a finalidade principal desta investigação era compreender quais as conceções que crianças dos 6 aos 10 anos têm das noções de justiça e de tribunal, bem como verificar como estas se alteram ao longo dos quatro anos de escolaridade do 1.º Ciclo do ensino Básico, tendo em conta as implicações e pertinência destas noções, por um lado, para a educação para a cidadania na escola e, por outro, para uma participação assisada da criança em tribunal, quando tal se afigura necessário e/ou pertinente. No que se refere ao conceito de justiça, as perguntas não sugeriam nenhum dos dois tipos de justiça, antes se pretendia verificar em que medida as definições ou exemplos dados pela criança remetiam mais para um ou outro tipo, dos atrás descritos.

 

MÉTODO

Participantes

Participaram neste estudo 146 crianças (81 do sexo masculino e 65 do sexo feminino; Midade =7.51 anos, SD = 1.24), com idades entre os 6 e os 10 anos, que frequentavam uma escola do 1.º Ciclo do Ensino Básico situada numa cidade do Alto Alentejo em Portugal. Destes 146, 46 frequentavam o 1.º ano de escolaridade (Midade= 6.1 anos), 41 frequentavam o 2.º ano (Midade = 7.1 anos); 32 estavam no 3.º ano (Midade= 8.4 anos) e 37 estavam no 4.º ano de escolaridade. A amostra é de conveniência e normativa, e a escola não se situava em territórios de intervenção prioritária.

Instrumento

Elaborou-se um guião de entrevista que visava objetivos mais amplos do que os que aqui se pretendem analisar (Martins & Estevão, 2019). Neste artigo analisam-se as respostas das crianças a quatro questões abertas inseridas num protocolo mais abrangente. As questões em análise incidiam sobre qual o significado do conceito de justiça, seguia-se uma pergunta sobre o significado do conceito de tribunal, e ainda outras sobre quem trabalha no tribunal e qual a sua função. A sequência das perguntas manteve sempre a mesma ordem.

Procedimento e Análise de Dados

Foram obtidas autorizações escritas da direção do agrupamento de escolas, do coordenador do 1.º Ciclo do Ensino Básico e dos encarregados de educação das crianças. Este estudo foi aprovado pela Comissão de Deontologia da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (ata n.º 8 da comissão de deontologia do conselho científico de 12 de abril de 2019). As crianças foram entrevistadas individualmente no espaço escolar em local apropriado, tendo sido acompanhadas no percurso entre a sala de aula e o gabinete da entrevista. Apenas foram entrevistadas as crianças cujos pais autorizaram e que aceitaram voluntariamente participar. Todas as crianças poderiam desistir de participar em qualquer momento. Foi garantida a confidencialidade dos dados obtidos.

As respostas das crianças foram objeto de uma análise de conteúdo que se baseou nos modelos teóricos sobre justiça e nas definições oficiais atribuídas ao tribunal e ainda nas respostas das crianças. As duas questões relativas tribunal (noção e qual a sua função) eram complementares, de modo que foram codificadas conjuntamente. A análise de conteúdo seguiu as sugestões de Bardin (1988) no sentido de se criarem categorias mutuamente exclusivas, homogéneas, pertinentes, objetivas e exaustivas.

No que se refere ao conceito de justiça, identificaram-se cinco categorias que permitiram organizar todas as respostas, a saber: a criança não sabe responder (diz “não sei” ou responde com outro conceito que ou não tem relação, ou tem uma relação vaga e distante com o conceito sem o explicar); a criança equaciona apenas formas de justiça retributiva de caráter punitivo, ou seja, a justiça é equacionada como vingança, prescrevendo algo como “olho por olho, dente por dente” através de exemplos; a criança equaciona apenas formas de justiça retributiva mas liberta-se da pura retaliação e sugere formas de justiça mais restaurativas e menos punitivas dando exemplos; a criança equaciona apenas formas de justiça distributiva dando exemplos; a criança concebe a justiça como algo que visa proteger e defender os mais fracos. Não surgiram enunciados em que a criança equacionasse simultaneamente os dois tipos de justiça: distributiva e retributiva.

Relativamente ao conceito de tribunal identificaram-se seis categorias: a criança não sabe responder (diz “não sei” ou responde com outro conceito que não tem qualquer relação com o tribunal); equaciona o tribunal como um local onde se castigam os infratores ou criminosos sem referências ao processo de julgamento; concebe o tribunal como um local onde se punem os infratores ou criminosos, referindo o processo de julgamento ou a arbitragem do juiz; concebe o tribunal como um local onde se resolvem litígios (exemplificando com processos de regulação parental ou disputas por bens); equaciona o tribunal como um local onde se resolvem litígios e onde se julgam aqueles que cometem infrações ou crimes referindo o papel do juiz e a tentativa de apuramento da verdade; e finalmente uma categoria onde são feitas outras afirmações relacionadas com a atividade do tribunal que, por exemplo, salientam apenas o papel das autoridades judiciárias ou das testemunhas, ou que equacionam o tribunal como local onde se apresentam denúncias. Quanto às profissões daqueles que trabalham no tribunal, considerou-se como resposta totalmente certa a resposta que indicasse o juiz, o procurador e o oficial de justiça, uma vez que advogados e agentes de segurança vão ao tribunal, mas não trabalham lá. Como nenhuma criança indicou as três profissões, não se criou essa categoria. Foram assim identificadas 3 categorias: a criança não sabe responder; apresenta uma resposta incorreta, mas indicando profissionais relacionados com o sistema judicial que habitualmente nele prestam serviços, como advogados ou polícias; identifica pelo menos um profissional que trabalha no e para o tribunal, geralmente o juiz.

30% de todas as respostas foram codificadas independentemente por duas das autoras deste trabalho, com vista a calcular o acordo interjuízes relativamente à forma como eram categorizadas as respostas às diferentes questões. Para o conceito de justiça obteve-se um acordo interjuízes na ordem dos 85%; no que se refere ao conceito de tribunal o acordo interjuízes foi de 87.5% e nas profissões relacionadas com o tribunal foi de 100%. Deste modo o índice de fidelidade do instrumento pode considerar-se bastante bom.

Utilizou-se o teste exato de Fisher- Freemnan-Halton e o V de Cramer para verificar se existiam as associações entre, por um lado, as conceções de justiça e, por outro, as conceções de tribunal, com os quatro anos de escolaridade (uma vez que as frequências esperadas não indicavam a utilização do Qui quadrado).

 

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DE RESULTADOS

Na Tabela 1 apresentam-se as cinco categorias identificadas para a noção de justiça das crianças, vários exemplos de enunciados emitidos pelas crianças ao longo dos quatros anos de escolaridade e ainda as frequências de respostas correspondentes às cinco categorias nos quatro anos de escolaridade.

A análise da Tabela 1 revela que a grande maioria (mais de dois terços) das crianças do 1.º e do 2.º ano e cerca de metade das crianças dos 3.º e do 4.º ano não são capazes de definir o conceito de justiça, nem de dar exemplos sobre a sua aplicação, sendo frequente a resposta “não sei”. Nas do 3.º e 4.º ano, a conceção de justiça é encarada apenas como justiça retributiva, de caráter punitivo, ou mesmo vingativo, e surge em cerca de um quarto dos enunciados das crianças; conceções de justiça retributiva de caráter mais restaurativo e menos punitivo surgem residualmente do 1.º ao 3.º ano, sendo mais frequentes no 4.º ano (aparecem em cerca de um quarto dos enunciados do 4.º ano). Enunciados revelando uma conceção de justiça distributiva não apareceram nas crianças de 1.º ano e foram muito pouco emitidos pelas restantes crianças e o mesmo se verificou com a justiça encarada como defesa dos mais fracos ou vulneráveis.

Foi encontrada uma associação estatisticamente significativa entre o ano de escolaridade e a conceção de justiça (FFH(n=146) = 33.69 P =.000, V de Cramer = .348) sugerindo que o conceito de justiça evolui com o desenvolvimento da criança, no sentido de a justiça retributiva evoluir de uma perspetiva punitiva para uma perspetiva mais reparadora e restaurativa.

Tendo em conta que o conceito de justiça é um conceito de natureza abstrata é natural que esteja submetido aos mesmos processos de desenvolvimento que o raciocínio moral, por isso é que é no 4.º ano que surgem os enunciados com algumas das conceções mais elaboradas e abrangentes do conceito; e que a conceção de justiça retributiva punitiva parece preceder uma conceção de justiça mais restaurativa. No entanto, prevalecem, nos enunciados das crianças, os exemplos de justiça retributiva por comparação com a justiça distributiva, contrariamente aos dados de outros autores (Smith & Warneken, 2016).

Na Tabela 2 apresentam-se as seis categorias identificadas para a noção de tribunal das crianças, vários exemplos de enunciados emitidos pelas crianças ao longo dos quatros anos de escolaridade e ainda as frequências de respostas correspondentes às seis categorias nos quatro anos de escolaridade.

A análise da Tabela 2 permite concluir que as crianças do 1.º e 2.º ano têm pouco conhecimento sobre o que é um tribunal (mais de metade é incapaz de explicar em que consiste, mesmo aproximadamente). Para as restantes crianças do 1.º e do 2.º ano e a para a maioria das do 3.º e 4.º ano, o tribunal é um local onde são punidos os transgressores, algumas não referem o processo de julgamento mas aproximadamente um terço das respostas do 3.º e 4.º ano já inclui nos seus enunciados a arbitragem do juiz ou o processo de julgamento e alguns dos seus procedimentos (papel dos advogados, testemunhas, processo de decisão). Enunciados que concebem o tribunal como um local onde se resolvem apenas litígios foram muito raros. No 3.º e 4.º ano foram também muito poucas as crianças que foram capazes de equacionar o tribunal como um local onde simultaneamente se podem resolver litígios e julgar os transgressores, ou seja, equacionar o tribunal como um local onde ocorrem processos cíveis e penais.

Foi encontrada uma associação estatisticamente significativa entre o ano de escolaridade e a conceção de tribunal (FFH(n=146) = 30.57 P =.000, V de Cramer = .339), sugerindo que o conceito evolui com a escolaridade da criança, no sentido de se aproximar do seu significado pleno.

Na Tabela 3 apresentam-se as três categorias identificadas para mapear quem trabalha no tribunal, vários exemplos de enunciados emitidos pelas crianças ao longo dos quatros anos de escolaridade e ainda as frequências de respostas correspondentes às três categorias nos quatro anos de escolaridade.

A análise da Tabela 3 evidencia que à medida que se avança no nível de escolaridade as crianças vão sendo capazes de identificar o juiz como um dos profissionais que trabalha nos tribunais. Algumas referem alguns dos profissionais (advogados, polícias, guardas) que nele prestam serviço.

 

CONCLUSÕES

As categorias encontradas para definir o conceito de justiça e as frequências que lhe estão associadas nos diferentes anos de escolaridade do 1.º ciclo do EB sugerem que a conceção sobre justiça segue o mesmo processo de desenvolvimento que o raciocínio moral avaliado a partir de histórias contendo elementos de transgressão ou das que pretendem avaliar a distribuição de bens (e.g., Martins & Esteves, 2019; Menin et al, 2013). Assim, as conceções sobre justiça retributiva, das crianças dos primeiros anos de escolaridade, remetem para uma conceção mais punitiva e retaliativa e vão evoluindo para uma conceção mais restaurativa no último ano do 1.º Ciclo do EB. Tendo em conta que a o conceito de justiça é um conceito de natureza abstrata, é natural que esteja submetido aos mesmos processos do desenvolvimento cognitivo e moral, por isso, foi no 4. º ano que surgiram os enunciados com algumas das conceções mais elaboradas e abrangentes do conceito, sendo neste nível que se encontra a maioria das crianças com 9 e 10 anos. É também esta a idade em que está prevista a transição da heteronomia moral para a autonomia moral, e foi nesta idade que começaram a surgir as primeiras noções de justiça restaurativa, neste estudo. Os resultados obtidos nesta investigação são assim congruentes com o previsto pelo modelo Piagetiano. Contudo, prevalecem, nos enunciados das crianças de todas as idades, os exemplos de justiça retributiva por comparação com os de justiça distributiva. Isto mesmo apesar da questão sobre a justiça anteceder sempre as questões relativas ao tribunal (de modo a não contaminar o conceito de justiça com a questões judiciais), ou seja, quando solicitada a responder espontaneamente, a criança equacionava apenas um tipo de justiça e, geralmente, era a de tipo retributivo, comprometendo a visão de outros autores segundo os quais as conceções sobre os dois tipos de justiça evoluiriam paralelamente (Smith & Warkenen, 2016) e contrariando a ideia de que as crianças desde cedo equacionam a igualdade como a forma mais frequente de implementar a justiça distributiva (Camino et al., 2017).

Quanto à noção de tribunal, esta não é compreendida pela maioria das crianças mais novas, sendo o tribunal considerado pela maioria das crianças do 3.º e 4.º anos como um sítio onde apenas vão os infratores ou os que praticam o “mal”, aspeto que pode inibir e confundir a criança que é chamada a este local para depor, qualquer que seja o motivo subjacente a essa participação. O mesmo acontece com o conhecimento ou desconhecimento sobre os profissionais que trabalham no tribunal. Ora a noção de tribunal remete mais para o conhecimento sobre os órgãos/instituições da democracia e do seu papel na sociedade, do que propriamente para questões de desenvolvimento moral, como é o caso para o conceito de justiça, de modo que este resultado pode refletir a ausência da temática da democracia e dos seus órgãos de soberania no âmbito da intervenção pedagógica nos primeiros anos de escolaridade.

Esta investigação tem algumas limitações pois incidiu sobre uma amostra de conveniência de caráter normativo, em que os alunos frequentavam todos a mesma escola e não havia registos de sinalizações à comissão de proteção de crianças e jovens. Portanto, a quase totalidade, senão a totalidade das crianças, não tinha participado em audiências de tribunal. Estudos futuros deverão partir de histórias infantis na forma de narrativas que envolvam o conceito de justiça de uma forma mais concreta a fim de complementar estes dados e aproximar a investigação dos contextos socias e culturais da criança (Parker, 2004).

Considerando ainda que as crianças podem ser auditadas em contexto de tribunal como vítimas, agressoras ou testemunhas em sede de processo penal ou ouvidas no âmbito de processo cível (para regulação de responsabilidades parentais, por exemplo), os resultados evidenciam que crianças mais novas não entendem o que é um tribunal e as mais velhas apenas o concebem como local de punição dos infratores. Este dado implica a necessidade de preparar as crianças que tenham eventualmente de efetuar depoimentos em tribunal e alerta para o facto de este local ser equacionado como um sítio onde vão apenas os que praticam o “mal”, aspeto que pode inibir e confundir a criança que é chamada a este local para depor, qualquer que seja o motivo subjacente a essa participação. Os estudos sobre audição das crianças em tribunal indicam que estas querem ser ouvidas sobre os assuntos que lhes dizem respeito mas muitas vezes consideram que o que dizem não tem impacto nas decisões dos magistrados, outras têm dificuldade em fazer-se ouvir, ou sentem-se demasiado pressionadas para dizerem o que os adultos esperam que digam (Melo & Sani, 2019). A melhoria dos espaços de audição das crianças e a adequação da forma de questionamento às competências e capacidades da criança poderão potenciar os resultados da participação da criança em tribunal, qualquer que seja a sua idade (Agulhas & Alexandre, 2017; Castro, 2020).

Os resultados obtidos sugerem que existem aspetos da educação para a cidadania que podem ser explorados ou aprofundados em contexto escolar com crianças, nomeadamente: promoção de conhecimentos sobre a democracia e sobre o papel dos órgãos de soberania existentes nesse âmbito; promoção do pensamento crítico sobre conceitos concretos e abstratos que decorrem das atividades quotidianas; debates e assembleias de turma sobre situações que envolvam raciocínio moral e implementação de decisões sobre questões que envolvem justiça distributiva e retributiva na escola, criando oportunidades para a participação da criança nas decisões da turma, da escola, da comunidade e em todos os assuntos que a envolvem de alguma maneira, de modo a concretizar o direito a participar nas questões que lhe respeitam e a promover aprendizagens que fomentem uma participação consciente, responsável e de qualidade nos vários contextos em que a criança se move. Em síntese, os dados deste estudo sugerem que a escola deve criar oportunidades de aprendizagem e de vivência da democracia e destacam que essas oportunidades devem ocorrer desde cedo na infância, a fim de potenciar uma participação esclarecida e responsável por parte das crianças nos seus diferentes contextos de vida (Carvalho & Silva, 2016; Conselho da Europa, 2016; Eurydice, 2017; Menezes & Ferreira, 2014; Tomás, 2007).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agulhas, R. & Alexandre, J. (2017). Audição da criança. Guia de boas práticas. Lisboa: Ordem dos advogados.

Camino, C. P., Galvao, L., Barbosa, M., & Sampaio, L.(2017). Development of distributive justice concerning food donation. Arquivo Brasileiro de Psicologia, 69(3), pp. 150-166. Acedido em 12 de maio, 2020, de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1809-52672017000300011&script=sci_abstract&tlng=en

Carvalho, R. & A. P. Silva (2016). A participação infantil em foco: uma entrevista com Natália Fernandes. Psicologia em Estudo, 21(1), 187-194. DOI: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i1.28430

Castro, H. C. (2020). A criança em tribunal: interseção dos espaços da justiça e do exercício dos direitos de participação. Revista Educação e Formação, 5(13), 41-58. DOI: https://doi.org/10.25053/redufor.v5i13.1940

Conselho Europa (2016). Estratégia do Conselho da Europa sobre os Direitos da Criança. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência.

Conselho Europa (s/d). Diretrizes do conselho da Europa sobre as estratégias nacionais integradas de proteção das crianças contra violência. Recomendação CM/REC (2009)10 e Apêndices à Recomendação. Estrasburgo: Conselho da Europa. Acedido em 22 de junho, 2020, de: https://rm.coe.int/168046eb83

EURYDICE (2017). Citizenship education at school in Europe – 2017. Eurydice report. Luxembourg: Publication Office of the European Union. 2017. Acedido a 5 de maio, 2020,  de: https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/6b50c5b0-d651-11e7-a506-01aa75ed71a1/language-pt/format-PDF

Fronius, T., Persson, H., Guckenburg, S., Hurley; N., & Petrosino, A. (2016). Restorative Justice in U.S. Schools: A Research Review. WestEd Justice & Prevention Research Center. Acedido a 14 de junho, 2020, de: http://www.antoniocasella.eu/restorative/Fronius_feb16.pdf

Martins, M. J. D. & Estevão, B. (2019). Desenvolvimento moral e conceito de mentira nas crianças. In V. Monteiro, Mata, L., M. A Martins, A C Silva, & M. Gomes. (Orgs.). Educar hoje: diálogos entre psicologia, educação e currículo. E book (pp. 141-156). Edições ISPA. Acedido a 2 de abril, 2020, de: http://loja.ispa.pt/produto/educar-hoje-dialogos-entre-psicologia-educacao-e-curriculo

Martins, M. J. D., & Mogarro, M. J. (2010). A educação para a cidadania no século XXI. Revista Iberoamericana de Educação, 53, 185-202. Acedido a 4 de janeiro, 2020, de: http://www.rieoei.org/boletin53_1.htm

Melo, M. F., & Sani, A. (2019). A participação da criança na justiça: mito ou realidade? Sociedad e Infancias, 3, 133-155. https://dx.doi.org/10.5209/soci.63787

Menezes, I., & Ferreira, P. (2014). Cidadania participatória no cotidiano escolar: a vez e a voz das crianças. Educar em Revista, 53, 131-147. https://doi.org/10.1590/0104-4060.36586

Menin, M. S., Bataglia, P. U., & Moro, A. (2013).  Adesão ao valor justiça em crianças e adolescentes. Estudos em Avaliação Educacional, 56(24), p. 18-47, 2013. Acedido a 4 de maio, 2020, de: http://hdl.handle.net/11449/115385

Monteiro, R. (Coord.). (2017). Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. República Portuguesa. XXI Governo constitucional. Ministério da Educação. Acedido a 2 de abril, 2020, de: http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ECidadania/Docs_referencia/estrategia_cidadania_original.pdf

Oliveira-Formosinho, J., & Formosinho, J. (2017). Pedagogia em participação: a documentação pedagógica no âmago da instituição dos direitos da criança no cotidiano. Em Aberto, 30 (100), 115-130. DOI: https://doi.org/10.24109/2176-6673.emaberto.30i100.3391

Parker, I. (2004). Qualitative Psychology. New York: Open University Press.

Piaget, J. (1932). Le Jugement moral chez l’enfant. Paris: P.U.F.

Queiroz, D., Ortega, A., & Queiroz, S. (2017). Aspetos do desenvolvimento moral de crianças em situação de risco social. Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas, 9(2), 114-137. DOI: https://doi.org/10.36311/1984-1655.2017.v9n2.06.p112

Ralws, J. (1971). A theory of justice. Cambridge. MA, Belknap Press Harvard University Press

Sarmento, M., Fernandes, N., & Tomás, C. (2007). Políticas públicas e participação infantil. Educação, Sociedade e Culturas, 25, 183-206. Acedido em 2 de setembro, 2020, em: http://hdl.handle.net/1822/36753

Smith, C. E., & Warneken, F. (2016). Children’s reasoning about distributive and retributive justice across development. Developmental Psychology, 52(4), 613–628. https://doi.org/10.1037/a0040069

Tironi, S. (2017). Criança, participação, política e reconhecimento. Direito & Praxis Revista, 8(3), 2146-2172. DOI:10.1590/2179-8966/2017/23563

Tomás, C. (2007). “Participação não tem Idade” Participação das crianças e cidadania da infância. Revista Contexto & Educação, 22(78), 45-68. https://doi.org/10.21527/2179-1309.2007.78.45-68

UNESCO (2016). Educação para a cidadania global. Tópicos e objetivos de aprendizagem. UNESCO. Acedido a 12 de maio, 2020, de:http://www.unesco.org/new/en/global-citizenship-education

UNICEF(1989). Convenção dos direitos das crianças. Acedido de 12 de maio, 2020, de: https://www.unicef.pt/actualidade/publicacoes/0-a-convencao-sobre-os-direitos-da-crianca/


 

Contacto: Maria José D. Martins, Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Portalegre, Praça da República 23-25, 7300-109 Portalegre / mariajmartins@ipportalegre.pt

Ana Margarida Veiga Simão, CCPSI, Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1649-013 Lisboa amsimao@psicologia.ulisboa.pt

Beatriz Estevão, Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Portalegre, Praça da República 23-25, 7300-109 Portalegre / beatriz.r.estevao@gmail.com

 

(Recebido em julho de 2020, aceite para publicação em setembro de 2020)