ARTIGOS
A Escola Portuguesa ao serviço do Estado Novo: as Lições de História de Portugal do Boletim do Ensino Primário Oficial e o Projeto Ideológico do Salazarismo
Maria Paula Pereira
Doutoranda em História, Universidade Aberta
RESUMO
O presente ensaio considera o Boletim da Direção Geral do Ensino
Primário, Escola Portuguesa, como um importante meio de comunicação
da política educativa do Estado Novo junto do professorado primário, com
objetivos de orientação e inculcação ideológica. Uma análise do lugar
ocupado pela História de Portugal nas páginas da Escola Portuguesa é
esboçada para o período compreendido entre 1934 e 1946. Os acontecimentos e
as figuras da História portuguesa que são usados como elementos
estruturantes do discurso político-ideológico do Salazarismo são
identificados. Estas práticas discursivas têm como principais objetivos a
legitimação do regime e a operacionalização do seu programa político junto
dos agentes educativos, alunos e comunidade local.
Palavras-chave: nacionalismo, história, professor primário
ABSTRACT
This essay considers the Bulletin of the General Directorate of
Primary Education, Escola Portuguesa, as an important means of
communicating Estado Novo education policy towards primary school teachers
in order to purpose them orientation and ideological indoctrination.
Analysis of the role of Escola Portuguesa, between 1934 e 1946, in
the
Portuguese History is outlined. The role of relevant events and personages
of Portuguese History, used as structural elements of the regime ideology,
is analyzed. The aim of this discursive practice is to legitimate the regime
and to make operational his political programme within teachers, students
and the local community.
Keys words: nationalism, history, primary school teacher
RÉSUMÉ
Cet article examine le Bulletin de la Direction
Générale de l'Enseignement Primaire, Escola Portuguesa, en tant
qu’important moyen de communication de la politique éducative de l’ Estado
Novo aux professeurs primaires, pour leur orientation et endoctrinement
idéologique. La place occupée par l'Histoire du Portugal dans les pages de
l’ Escola Portuguesa, durant la période comprise entre 1934 et 1946,
est analysée. Les événements et les figures de l'Histoire du Portugal qui
sont utilisés comme éléments de structure du discours idéologico-politique
de Salazar sont identifiés. Ces pratiques discursives ont pour objectifs
principaux la légitimation du régime et l'opérationnalisation de son
programme politique auprès des agents éducatifs, des élèves et de la
communauté locale.
Mots-clés: nationalisme, histoire, professeurs primaires
I. INTRODUÇÃO
A imprensa da educação e ensino como objeto de investigação autónomo
permite-nos compreender a política educativa do Estado Novo, segundo António
Nóvoa (1993, p. XXXII), numa perspetiva interna ao próprio sistema
educativo. A Escola Portuguesa é da responsabilidade da Direção Geral
do Ensino Primário, permitindo, de acordo com Joaquim Pintassilgo e Maria
João Mogarro (2012, p. 35), a apreensão dos objetivos pedagógicos e
políticos definidos pelo Salazarismo para o sistema educativo. Maria
Filomena Mónica (1978, p. 167) já salientara anteriormente a importância
deste periódico, referindo-se-lhe como um recurso importante usado pelas
autoridades para influenciarem as práticas educativas do professorado
primário. Nos últimos anos, têm sido publicados alguns trabalhos que
confirmam o papel deste semanário pedagógico nos domínios da direção e da
orientação do ensino primário [1]. No seguimento deste discurso
historiográfico, consideramos a Escola Portuguesa como um importante
veículo oficial da política educativa do Estado Novo, sendo um recurso usado
pela Tutela para a orientação pedagógico-didática e ideológica dos agentes
do ensino primário, embora com especial incidência nas zonas rurais. A sua
publicação deve ser analisada no contexto da estratégia oficial de controlo
das práticas educativas do professorado primário, com a qual se procurava
ultrapassar o número limitado de inspetores no terreno e a falta de formação
dos regentes escolares.
As elites políticas consciencializaram-se, desde os finais do século XIX, da importância da escola primária na construção de uma consciência nacional. Eric Hobsbawam (2004, p. 87) considera que os Estados recorriam às escolas primárias para comunicarem com as populações e para difundirem a imagem e a herança da Nação. A escola é responsável pelo desenvolvimento de ações conducentes à criação de vínculos entre as crianças e a Nação, socorrendo-se para isso de referenciais simbólicos como a bandeira e o hino nacional, por forma a promover a construção da identidade nacional. Maria Cândida Proença (2000, p. 7) refere que a escola desempenha uma ação importantíssima na formação de representações que constituem um elemento estrutural da imagem que um povo faz de si próprio. Assim, para além do contexto familiar, é na escola que se inicia a socialização das crianças, onde são educadas para o exercício da cidadania. Maria Isabel João (2001, pp. 695-697) apresenta a escola como uma importante fábrica de cidadãos nacionais, considerando que a aprendizagem da Geografia e da História fornece às crianças os conhecimentos básicos necessários para que possam adquirir uma consciência nacional. O aparelho ideológico do Estado Novo, consciente desta questão, formulará e difundirá, nomeadamente através da criação do Secretariado de Propaganda Nacional em 1933, um programa de política do espírito (Ó, 1999, pp. 55-59) do qual a escola primária será um dos principais agentes ideológicos.
O período de tempo compreendido entre a instauração da Ditadura Militar e o início do Estado Novo é um período complexo (Rosas, 1994, pp. 151-152), durante o qual se iniciará o desmantelamento do liberalismo e se procederá à instauração de um regime autoritário, antiparlamentar e corporativo. Este processo, que culminará com a instauração do Salazarismo, é feito à custa de repressão e de concessões às várias fações que apoiaram o movimento militar do 28 de maio. Os ideólogos do Estado Novo procuraram estabelecer um sentido imediato para este novo regime, através de um sistema de representações expresso por significados e valores. Os discursos ideológicos produzidos no contexto do poder político expressam um conjunto de crenças que se orientam para a ação, originando normativos de conduta e de motivações (Eagleton, 1999, p. 55). A crença no regime coloca-se ao nível da produção das palavras, aquilo que Pierre Bourdieu (2001, p. 15) designa de poder simbólico, o poder de constituir o dado pela enunciação, de ver e fazer crer. O discurso nacionalista fornecerá a imagem de um sistema unitário e integrador, construído em torno da ideia de Nação, e oferecerá uma imagem homogénea do aparelho político, acabando por esconder as divisões existentes entre as diversas fações que apoiaram o movimento responsável pela instauração da Ditadura Militar. Fornecerá ainda uma visão globalizante que, através da construção de uma identidade nacional, se consubstanciará num espaço próprio, Portugal e o seu império, e num tempo histórico que ligará o passado ao presente e se projetará para o futuro.
O princípio do nacionalismo é usado enquanto uma teoria de legitimidade política do Salazarismo, apresentando-se uma visão unitária das dimensões nacional e política que se consubstancia no Estado-Nação (Gellner, 1993, p. 11). Para Anthony Smith (1997, p. 10), o nacionalismo, enquanto movimento ideológico, deverá ser relacionado com a formulação de uma identidade nacional, que deverá ser vista como um fenómeno cultural coletivo. A escola primária e os meios de comunicação, desde os finais do século XIX, serão canais usados pelos Estados para transmitir às populações a imagem e a herança de uma Nação. Os meios de comunicação tornar-se-ão um veículo para a expressão da identidade nacional, uma vez que possibilitam a apresentação de discursos ideológicos uniformizados, que são comunicados com propósitos deliberados de propaganda (Hobsbawm, 2004, pp. 129-136). O boletim Escola Portuguesa será utilizado pela Direção Geral do Ensino Primário para transmitir uma imagem do projeto nacionalista do Estado Novo aos professores primários e estes, por sua vez, deverão transmiti-la aos seus alunos e à comunidade local. O professorado é, assim, dotado de uma missão política no meio local, determinada pela Tutela e em situações muito concretas, nomeadamente nas vésperas das eleições legislativas, para propagandearem aquilo que se designa de “progressos materiais” do Estado Novo.
O discurso nacionalista não é, em Portugal, uma construção do Estado Novo. Ele é visível desde os finais do século XIX e relevante durante o período republicano, embora marcado pelo espírito democrático e laico que caraterizava este regime político. O nacionalismo irá estruturar-se em valores usados anteriormente, como acontecimentos e figuras do passado histórico português, tendo especial destaque as temáticas da missão civilizadora e da defesa do Império. Estes axiomas são reproduzidos pelo regime e usados para justificar a individualidade da Nação portuguesa. O Estado identifica-se com a Nação e apresenta-se como um movimento de ressurgimento nacional, construindo uma nova versão do tradicionalismo português (Catroga, 1998, p. 264). A legitimação do poder político e a necessidade de reforçar os elos identitários dos portugueses com o Estado levam a que o discurso ideológico recorra a práticas memoriais. A memória social é fundamental para a legitimação do poder político (Cunha, 2001, p. 27) e age, simultaneamente, como um elemento integrador da identidade do indivíduo, reforçando os seus laços identitários com a Nação. A Nação une os portugueses, rejeitando o individualismo caraterístico do período liberal, e promovendo a identificação de cada indivíduo com a comunidade nacional. Este conceito permitirá a sua inscrição num tempo histórico. A construção de um projeto ideológico nacionalista elaborado em torno da figura de um chefe virá ser analisada, considerando-se a influência da História e do seu ensino na sua formulação e implementação. A partir do período liberal, o ensino da História será visto como um elemento imprescindível ao desenvolvimento de uma educação nacionalista (Proença, 2000, p. 7). Nesta perspetiva, importa apreender o lugar da História no boletim Escola Portuguesa, entre 1934 e 1946, e identificar que acontecimentos e figuras do passado histórico português surgem nas suas páginas no contexto da operacionalização do programa político-ideológico do Estado Novo.
2. O boletim Escola Portuguesa: orientação e doutrinação do professorado primário
Para contextualizar a criação deste periódico na ação educativa do Estado
Novo, seguimos a estruturação cronológica da sua política, apresentada por
António Nóvoa (1992). O período de tempo compreendido entre o início da
Ditadura Militar e o ano de 1936 conhecerá vários Ministros da Educação e
caracterizar-se-á por uma ação educativa cuja principal meta será o
desmantelamento da escola republicana e das suas práticas educativas. O
boletim Escola Portuguesa será criado pelo Decreto nº 22369, de 30 de
março de 1933, do Ministro Cordeiro Ramos. A política educativa deste
Ministro, convergente com o pensamento pedagógico e político de Salazar
(Gameiro, 2012, p. 92), introduz reformas no sistema de ensino de cariz
nacionalista que visavam a liquidação do sistema educativo republicano. O
Ministro, influenciado pela política educativa alemã (Ramos, 1937), inicia a
construção de um projeto de formação de um “novo homem” de cariz
autoritário. Para a sua implementação, tornar-se-á necessário remodelar o
Ministério, nomeadamente os serviços de administração, orientação e
inspeção, por forma a criar um conjunto de burocratas “disciplinados e
disciplinadores” que atuem como apóstolos do regime. O principal objetivo do
Decreto nº 22369 consistia em assegurar uma orgânica administrativa que
fomentasse a prática de um ensino primário orientado pelas “exigências
nacionais” impostas pela Revolução de 28 de maio de 1926. É no contexto
desta remodelação que é criado este semanário pedagógico. O artigo 174º
deste decreto determinava que a Escola Portuguesa seria uma
publicação periódica composta pelas seguintes secções: doutrinária,
noticiosa, de legislação, de despachos e de estatística. Os textos de
caráter doutrinário tinham como principais propósitos a melhoria da
metodologia pedagógica do sistema de ensino e o contributo, com todos os
elementos que fossem necessários, para o progresso cultural e profissional
dos professores primários. A análise dos artigos publicados entre os anos
letivos de 1934-1935 e de 1945-1946 leva-nos forçosamente a considerar, no
seguimento de Verón (1978, p. 9), as esferas da produção, da circulação e do
reconhecimento.
Ao considerarmos a esfera da produção, a maioria dos textos publicados são da autoria de inspetores, nomeadamente no que diz respeito aos editoriais. Destacamos ainda os discursos oficiais e os artigos apresentados em conferências cuja realização era considerada imprescindível para a correção cultural do professorado. A produção destes textos tem de ser perspetivada nas dimensões pedagógica e política, e, embora estas se entrecruzem, o que acabará por predominar será um discurso ideológico, mesmo nos textos de cariz pedagógico-didático.
O controlo do Estado sobre os professores aumenta no período da Ditadura e intensifica-se na década de 30, no contexto do processo de consolidação do Estado Novo. A partir do ano de 1933, o Estado não permitirá que os professores tenham uma organização de defesa dos seus interesses (Mónica, 1978). Assiste-se a uma ação política de desvalorização e de desqualificação dos professores, marcada pela criação dos regentes escolares (Nóvoa, 1992, p. 458). Esta última medida será justificada por um discurso político de contenção orçamental. Argumentação ideológica a que o Ministério da Instrução Pública recorrerá para suportar uma decisão que, no início, se revestirá de um caráter temporário e que acabará por se tornar permanente e por dar lugar a polémicas que opõem professores e regentes, pretendendo os segundos a equiparação profissional e salarial aos primeiros (Pinheiro, 1997). O desmantelamento do sistema de ensino anterior passava essencialmente pela ação disciplinadora da conduta e das práticas educativas do professorado primário, promovendo-se a doutrinação ideológica e cerceando-se a sua capacidade interventiva, e até crítica, expressa anteriormente em periódicos sobre ensino e educação. Esta atuação autoritária e repressiva do Ministério é também visível, ainda que de forma indireta, nas práticas dos professores da Escola do Magistério Primário de Lisboa. As intervenções deste conjunto de professores, nas reuniões de Conselho Escolar, são bastante intensas e críticas até ao ano letivo 1932-1933, propondo, o Conselho, várias e extensas alterações ao texto dos dispositivos legais em vigor. Estas intervenções desaparecem por completo das atas das reuniões, a partir do ano letivo de 1933-1934, passando as mesmas a registar essencialmente, e de forma muito sumária, o comportamento e o aproveitamento dos “alunos-mestres”[2].
O melhor processo de exercer o controlo sobre as práticas escolares seria através de ações inspetivas por todo o país, no entanto, o número limitado de inspetores e as suas visitas rápidas e irregulares às escolas impediam a eficácia deste controlo (Mónica, 1978, p. 167). Assim, a criação da Escola Portuguesa é vista como um meio de exercício de uma ação disciplinadora, mediante o doutrinamento pedagógico e ideológico do professorado, sendo muitos dos seus textos da responsabilidade dos inspetores orientadores (Mónica, 1978, p. 169). Este periódico surge como o principal meio de orientação e doutrinação do professorado primário, procurando-se, por seu intermédio, obstar ao isolamento dos professores das zonas rurais e à falta de formação por parte dos regentes escolares. A formação pedagógica dos professores rurais, que tinha sido assegurada pelo Estado durante o período compreendido entre 1919 e 1930, deixará de existir e, a partir do ano letivo de 1930-1931, assistir-se-á a uma simplificação da formação dos futuros professores (Adão e Leote, 2006, p. 81) nas escolas que passaram a designar-se de Magistério Primário. Estas escolas irão mesmo encerrar entre 1936 e 1942 sob o pretexto da existência de um número excessivo de professores primários no país. Os textos deste periódico, apesar de terem objetivos de orientação e de aperfeiçoamento científico e profissional, não deixam de ser político-ideológicos. Maria Isabel João (2002, p. 613) refere que o discurso pedagógico tem objetivos formativos mais vastos do que o discurso político, apesar de também ser ideológico, porque enuncia e transmite uma determinada visão da sociedade. O boletim Escola Portuguesa procura essencialmente a identificação dos professores com o regime, orientando-os para práticas pedagógicas consentâneas com o seu pensamento político.
A influência da Escola Portuguesa sobre as práticas escolares dos professores não está ainda avaliada [3]. Importa, no entanto, considerarmos as esferas da circulação e de leitura deste periódico. A análise deste semanário leva-nos a considerar que há uma preocupação acrescida da Direção Geral do Ensino Primário, em termos de público-alvo, com a orientação dos professores das zonas rurais. O Ministério tem consciência de que é necessário preparar agentes do ensino primário formados num “espírito rural” e adaptáveis ao meio em que lecionarão (Escola Portuguesa, 2 de dezembro de 1937, p. 107), sendo a sua falta de preparação a principal razão que a Tutela encontra para situações como o abandono do seu posto no decorrer do ano letivo, a existência de um número significativo de faltas às atividades letivas ou ainda para a não-aceitação em permanecer na mesma escola durante dois anos letivos consecutivos.
A maioria dos textos analisados dirige-se aos professores dos meios rurais, valorizando-se o seu papel enquanto modelo de conduta da população local[4]. As lições de didática de várias disciplinas, na planificação de exercícios de observação e de comparação, apresentam sempre exemplos do trabalho agrícola e da estrutura da propriedade no espaço rural, não se encontrando nenhum exemplo relativo à vivência urbana ou a atividades profissionais ligadas a este meio. A apologia de uma “mística de ruralidade” não deixa, no entanto, de estar presente nos textos do boletim, nomeadamente quando se alerta para os perigos da vivência urbana e se enaltece o papel que o professor primário deverá desempenhar no espaço rural.
Na realidade, a leitura da Escola Portuguesa era importante não só pelas informações de caráter profissional que fornecia, como, por exemplo, sobre concursos ou licenças, mas também porque as circulares e as notas oficiais do Ministério eram divulgadas neste semanário e a sua publicação era considerada como o meio de informação suficiente para o seu conhecimento e cumprimento. As ações inspetivas do Ministério confirmavam se nas salas de aula existia o último número da Escola Portuguesa, o que aponta para que este periódico seja um canal privilegiado de comunicação entre o Ministério e o professorado (Pintassilgo e Lume, 2002, pp. 4-5).
As representações sobre o professor primário formuladas neste boletim
apontam para a valorização da sua atividade pedagógica, o que entra em
contradição com as medidas de desvalorização impostas pela legislação em
vigor. É criada uma visão mística da sua profissão, enquanto um “apóstolo de
almas”, com o propósito da sua integração no projeto educativo e político do
regime e da sua ação como agente propagandístico. O professor é visto como
um “semeador da seara” da Revolução Nacional (Escola Portuguesa, 19
de dezembro de 1935, p. 81), promovendo a modelação das almas das crianças e
das suas famílias no espírito nacionalista.
A nomeação de Carneiro Pacheco para Ministro da Instrução Pública, a 18 de
janeiro de 1936, abre uma nova fase da política educativa do Estado Novo. O
Ministério é remodelado e passa a designar-se de Educação Nacional,
consolidando-se um projeto pedagógico e político de uma “escola portuguesa e
política”, que não poderá ser neutral perante o programa de
ressurgimento nacional. Inicia-se uma reforma educativa em que são criadas
as bases estruturais para a implementação do projecto de formação integral
dum novo homem (Ramos, 1937). Este projeto, até aqui direcionado para
as elites, abrangerá agora todos os portugueses, colocando-se em segundo
plano as polémicas em redor das vantagens e dos inconvenientes do
analfabetismo (Mónica, 1978, pp. 321-353). A reforma educativa abarcará o
ensino primário e secundário, mas o projeto de modelação de almas das
“massas” será desenvolvido na escola primária, continuando o ensino liceal
reservado às elites. A aquisição de educação não será um fator de mobilidade
social durante este período, afirmando-se o princípio de que cada um deve
ocupar o lugar que lhe está reservado na orgânica corporativa do regime,
como afirma o Diretor de Distrito Escolar Abel Viana: “O equilíbrio justo
procura-o e consegui-lo-á o Estado Novo, organizando o corporativismo, no
qual é possível acomodarem-se todos os homens, conforme os recursos de cada
um (…), sem a mentira de igualdades irrealizáveis” (Escola Portuguesa,
2 de julho de 1936, p. 266).
Aumenta, a partir de 1936, a doutrinação política do professorado, sendo
representado como um “exército de vontades alinhadas” (Escola Portuguesa,
30 de janeiro de 1936, pp. 107-109) com a política educativa do Estado Novo.
É preciso, no entanto, considerarmos que a realidade escolar poderá não
espelhar o cumprimento integral de todas as disposições legais que são
produzidas. As suas práticas educativas eram ainda influenciadas pela escola
republicana ou, simplesmente, e mais provavelmente, traduziam a adaptação
das disposições legais, sobre programas e manuais, à realidade do meio onde
se lecionava. São regulares as advertências, emboras geralmente discretas,
aos professores no sentido de cumprirem as disposições em vigor e de
colaborarem em todas as ações que exprimam o idealismo do Estado Novo.
Segundo a Escola Portuguesa, o “apóstolo” do regime é o bom professor
que segue as orientações educativas do regime, enquanto serão do
“reviralho”, nas palavras do Diretor Geral do Ensino Primário Braga Paixão,
todos os que perfilhem de um ideal de escola sem orientação e “doutrina
moral” (Escola Portuguesa, 2 de maio de 1935, pp. 555-556).
3. A História na Escola Portuguesa
3.1. O projeto ideológico do Estado Novo e a História na Escola
Portuguesa
A complexidade da conjuntura política no período da Ditadura Militar e do
nascimento e consolidação do Estado Novo, até ao ano de 1940, leva a um
discurso ideológico de legitimação do regime. Na Escola Portuguesa, o
regime assume-se como herdeiro da Revolução Nacional de 28 de maio e
defende-se mesmo a sua continuação por forma a resolver uma crise total,
provocada pelo liberalismo, que terá atingindo o seu apogeu durante o
período republicano. A ideia de ordem contrapõe-se à desordem e à dissolução
política e económica, por forma a justificar o novo regime, sendo o espírito
revolucionário usado como alicerce do progresso moral e material da Nação. É
um discurso característico das chamadas “ditaduras revolucionárias”, regimes
que legitimam o seu nascimento e a sua continuidade política através da
necessidade de uma restauração total da ordem face a uma situação de caos
(Bobbio, 1989a, p. 210). A ditadura é apresentada como o regime político que
era necessário ao país, devendo perpetuar-se a ideia de revolução agora
assimilada por um projeto de ressurgimento nacional. Através do Secretariado
de Propaganda Nacional, difunde-se um programa de “política do espírito”, no
qual a escola será um dos principais agentes de inculcação ideológica. As
práticas discursivas da Escola Portuguesa têm como objetivo orientar
os agentes de ensino para a ação e adesão ao regime e, por seu intermédio,
será feita a inculcação ideológica nos alunos e na comunidade local.
O referencial é sempre a figura de Salazar, o “chefe da Nação”, representado
como um homem próximo dos portugueses, com espírito de sacrifício e de
dedicação à Pátria. Esta representação acaba por constituir uma imagem
contraditória e distorcida da própria realidade, que é marcada pela
existência de um regimento autoritário e de um chefe a quem se exige total
obediência. O modelo de comportamento do chefe deve ser assimilado e seguido
mimeticamente pelas massas, pois só assim se poderão formar novas gerações
educadas no espírito do amor e da defesa da Pátria, o que levará à
representação de Salazar como o exemplo do português modesto e trabalhador,
pronto a sacrificar-se pela Pátria (Escola Portuguesa, 16 de novembro
de 1939, p. 99). Assim, o Estado Novo procura eliminar todos os
comportamentos que considera desviantes e operacionalizar a adesão
voluntária dos portugueses ao regime. O próprio Salazar afirma, num discurso
de 30 de julho de 1930, que “nenhum governo de violência pode durar em
Portugal” e que será melhor conquistar os portugueses e levá-los a colaborar
com os dirigentes do que recorrer à repressão [5]. No entanto, a Escola
Portuguesa legitimará o uso da repressão perante a presença de elementos
perturbadores da ordem e da unidade nacional: “O Estado que representa a
Nação há-de ser bastante forte para dominar e dirigir os interesses que se
ergam contra a colectividade que a forma” (Escola Portuguesa, 5 de
junho de 1941, p. 642).
A legitimação do poder político e a necessidade de reforçar os elos
identitários dos portugueses com o Estado Novo levam a que o discurso
ideológico recorra a práticas memoriais. A memória social legitima o
exercício do poder político e está intimamente ligada à construção da
identidade nacional. A sua formulação ideológica parte de uma elite ligada
ao poder político, apelando-se à unidade nacional e política, através do
conceito de Estado-Nação, estruturada em torno de um chefe. O Estado Novo
apresenta-se como um movimento de ressurgimento nacional, defendendo-se o
regresso às tradições. As ideias de História, memória e Nação circulam,
segundo Pierre Nora (1993, p. 11), de forma complementar. A identidade
nacional, construída pelo poder político, reclama a sua “iluminação pelo
passado” (Nora, p. 11) da História de Portugal. Elementos do passado
funcionam como lugares de memória e constituem referências de ação para o
presente (João, 1998, p. 395) e para o futuro, através do ensaio de um
projeto de cariz totalizante que visa a educação política dos portugueses. O
conceito de Nação permitirá a inscrição num tempo histórico, uma vez que o
passado se transforma, segundo José Gil (1989a, p. 299), na pré-história da
Nação (a sua fundação) e se constrói um tempo histórico particular portador
de elementos míticos e simbólicos. No boletim Escola Portuguesa, o
conceito de Nação assimila o de Pátria, e este último ganha relevo nos
textos publicados. A escola primária assume-se como portuguesa, portadora de
ideais nacionalistas e cristãos que serão afirmados através da ligação do
presente ao passado nacional. A escola primária terá de ser ativa e
afirmativa da “pátria no passado, no presente e no futuro” (Escola
Portuguesa, 11 de outubro de 1934, p. 2), formulando-se um discurso em
que a Nação portuguesa aparecerá revestida de uma mística de eternidade.
Afirma-se a ideia de que os portugueses são herdeiros de uma tradição
histórica, espiritual e moral, que deve ser preservada e expressa através
dos valores tradicionalistas de Deus, Pátria, Família e Trabalho, dos quais
o Estado Novo se assume como herdeiro legítimo e cuja defesa levará
Portugal, num futuro próximo, a ser uma “grande e próspera nação”.
Um dos elementos estruturantes da identidade nacional formulada pelo Estado Novo é a vocação imperial e civilizadora, uma ideia formulada desde os finais do século XIX, acentuada em épocas de crise e associada à ideia de preservação dos territórios coloniais. O Estado Novo mantém esta ideia e reconfigura-a ao apresentar-se como um Estado portador de um legado histórico grandioso que se consubstancia no Império Português. Um discurso político-ideológico autoritário que, de acordo com Valentim Alexandre (1995, pp. 45-46), se organiza em torno dos vetores de dominação/sujeição, embora conferidos de um carácter transitório, que se projetará num futuro de grandiosidade nacional. O boletim Escola Portuguesa apresenta vários textos em que se doutrina os professores sobre a grandiosidade do território português, considerando-se para o efeito a dimensão dos territórios coloniais e defendendo-se que se deve incutir nas crianças a ideia de que “Portugal não é um país pequeno”[6]. Assim, competirá à escola coadjuvar a política colonial do Estado e estar, nas suas atividades escolares, “impregnada do espírito colonial”, relembrando e conservando, no presente, o caráter universalista e civilizador da Nação portuguesa. A escola deverá promover as colónias enquanto um espaço privilegiado para residir e trabalhar, sendo uma solução viável para combater o problema do desemprego que é focado com alguma regularidade no boletim. A conceção deste “sentimento imperial”, na década de 30, é também influenciada pela conjuntura internacional, marcada pela política de expansionismo dos regimes italiano e alemão, e conduzirá à afirmação de que a política colonial portuguesa não é dominada por um sentimento imperialista, uma vez que a tendência não é o alargamento de fronteiras mas a necessidade “urgente de continuar a civilizar” os territórios coloniais (Escola Portuguesa, 7 de fevereiro de 1935, pp. 307-308).
3.2. O Lugar da História
A construção de um projeto ideológico nacionalista não poderá ser dissociada
da História e do seu ensino. Maria Cândida Proença (2000, p. 7) refere que,
a partir do século XIX, com o liberalismo, o ensino da disciplina é visto
como um elemento imprescindível ao desenvolvimento de uma educação
nacionalista. O Estado, desde o século XIX, promoverá a integração da
população, segundo António Candeias (2009, p. 26), através de padrões
culturais que procuram a legitimação popular e a modelação de
comportamentos. O poder político consciencializou-se de que a escola é um
espaço de socialização fundamental para a formação de uma consciência
nacional. No entanto, só poderemos equacionar a relação entre socialização e
educação se o sistema de socialização for aplicado de forma massiva a uma
população (Candeias, 2009, p. 14), o que acontecerá com a reforma educativa
iniciada por Carneiro Pacheco, em 1936. O nascimento e desenvolvimento de
uma política educativa nacionalista, iniciada por Cordeiro Ramos e
operacionalizada por Carneiro Pacheco, levam à apropriação e utilização
ideológica da memória histórica por parte do poder político. Esta questão
levou-nos a refletir sobre o lugar ocupado pela memória histórica e pelo
ensino da História na Escola Portuguesa. Para a prossecução desse
objectivo, analisámos 169 textos do boletim Escola Portuguesa com
referências à História de Portugal, assim como ao seu ensino, publicados no
período compreendido entre os anos letivos 1934-1935 e 1945-1946 e
distribuídos pelas várias seções do boletim.
Quadro 1: Textos do boletim Escola Portuguesa com referências à História de Portugal
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In Escola Portuguesa, 1934-1946.
O discurso pedagógico sobre o ensino da História na Escola Portuguesa
é baseado numa “metodologia global”. A pedagogia da Escola Nova, e após um
período de rejeição, será reformulada e integrada no pensamento político de
cariz conservador do regime. Uma circular da Direção Geral do Ensino
Primário de 28 de maio de 1934 é exemplo desta reformulação pedagógica
quando define a escola primária como ativa, não conservadora e não
verbalista, devendo a criança ser tomada como um bloco por forma a promover
o desenvolvimento harmonioso das suas aptidões (Escola Portuguesa, 11
de outubro de 1934, pp. 4-6). No entanto, esta circular reafirma que compete
à escola ensaiar o homem que convém à sociedade e rejeitar o individualismo
que é associado ao espírito da escola republicana. A influência da pedagogia
da Escola Nova surge com regularidade nos textos publicados no boletim, onde
se constata a existência de um processo de reformulação e de integração no
projeto educativo do Salazarismo (Strang, 2011, pp. 6-7), nomeadamente no
que diz respeito ao ensino da História. No domínio da Didática da História,
registam-se várias referências à metodologia pedagógica desenvolvida por
Decroly, e continuada por Ferrière, devendo o ensino basear-se em centros de
interesse, assim como na observação que é considerada o ponto de partida
para as associações no tempo e no espaço (Pinheiro, 1965). O professor
deverá seguir um “método global” [7] e partir de situações da realidade
presente, conhecidas pelos alunos, para o desconhecido e para o passado,
segundo um método cronológico-regressivo. Muitos exemplos destes
apontamentos de didática reportam-se ao espaço rural e aos “progressos
materiais” do regime salazarista, o que leva a que se identifique como
material didático indispensável, no plano de aula, os quadros da Lição de
Salazar, a partir de 1938, e se publiquem os conteúdos que devem ser
salientados em cada um destes quadros. O material didático a usar nas aulas
deve incluir mapas, textos, gravuras e notícias de jornais, e defende-se a
importância das visitas de estudo para a consolidação dos conhecimentos.
Constata-se, no entanto, que esta metodologia não é seguida em muitas
escolas, por causa da extensão dos programas e da existência de grupos-turma
compostos por várias classes.
A importância dada à História e ao seu ensino, na Escola Portuguesa e
no discurso ideológico do Estado Novo, não encontra equivalente na estrutura
curricular do ensino primário elementar, assistindo-se à redução e
simplificação do seu programa e até mesmo ao seu desaparecimento do
currículo deste nível de ensino. Desde a Ditadura Militar que se registam
alterações dos programas e dos seus conteúdos, começando pela remoção, em
1929, das matérias que diziam respeito à Pré-História, à Fixação dos
Primeiros Povos e aos Contactos com os Povos do Mediterrâneo[8].
Saliente-se, no entanto, que esta simplificação é feita em todas as
disciplinas do currículo. O Ministro Cordeiro Ramos, através do decreto nº
21103 de 7 de abril de 1932, definirá as orientações que devem presidir ao
ensino da História, apresentando as diferenças em relação ao ensino no
período liberal que é apelidado de derrotista. O Estado considera, neste
decreto, que o ensino da história divide-se em duas partes, uma expositiva e
outra “crítica”, e que esta última tem sido uma “função” dos historiadores (Diário
da República, 15 de abril de 1932, p. 625). A partir deste normativo,
esta “função”, que é considerada como subjetiva, passará a ser da
responsabilidade do Estado, competindo-lhe a definição da verdade nacional
que se traduzirá na “verdade que convém à Nação”. Determina-se a
glorificação e exaltação de todos os acontecimentos e figuras a que estejam
subjacentes os valores do regime. Inclui-se também a apologia do
autoritarismo, assim como se censura tudo o que é elemento de dissolução. A
memória construída é uma memória seletiva (Pollak, 1992) que atuará, de
forma deliberada, censurando e criticando os acontecimentos do período
liberal. No entanto, este período é regularmente lembrado, no boletim, como
sendo responsável pelos problemas do país, questão que levou a que o Estado
Novo reagisse e iniciasse um programa de ressurgimento nacional. A reforma
do ensino iniciada em 1936 já não contempla o ensino da História no ensino
primário elementar. O decreto 27279, de 24 de novembro de 1936, critica, no
seu preâmbulo, o estéril enciclopedismo da escola e defende um ensino
prático e cristão estruturado em torno do “saber ler, escrever e contar” e
das “virtudes morais e do amor a Portugal”. Durante o ano letivo de
1936-1937, verificar-se-á, na Escola Portuguesa, uma diminuição de
referências no que respeita à importância da História e do seu ensino. No
ano letivo seguinte, assiste-se ao seu aumento, justificando-se o
desaparecimento do ensino desta disciplina com a organização do currículo do
ensino primário elementar em três anos letivos, e frisa-se que esta situação
não implica o seu esquecimento, pois os seus conteúdos devem ser lecionados
pelas disciplinas que integram o currículo deste nível de ensino [9]. A
intensificação do número de textos e de páginas dedicados ao ensino e à
memória histórica, no período compreendido entre os anos letivos de
1937-1938 e 1940-1941, é fortemente influenciado pela atualidade da
conjuntura internacional, nomeadamente a Guerra Civil de Espanha e a Segunda
Guerra Mundial. O discurso ideológico é mais forte e estrutura-se em torno
do combate à ameaça soviética, à exaltação da paz e à necessidade de
obediência a Salazar. A consolidação do regime, a partir de 1940, leva à
secundarização do lugar da História nas páginas da Escola Portuguesa.
O pendor religioso intensifica-se e a religião funciona como motor da
História nacional. Refira-se a título de exemplo um texto de Manuel Landeiro
subordinado ao tema “Portugal sempre foi Cristão”. Neste artigo, o país é
apresentado como uma Pátria nascida e gerada sobre a proteção da Igreja
Cristã. O autor descreve vários factos da História portuguesa que comprovam
essa relação e que culminam no período republicano com os milagres de
Fátima, acontecimento que, no seu entendimento, serviu para renovar o
“Tratado de Amizade” de Deus com Portugal (Escola Portuguesa, 21 de
novembro de 1940, pp. 120-121).
O ensino da História não corta com a exaltação nacionalista, de cunho imperial e civilizador, que marcava presença desde finais do século XIX, mas ganha novos contornos numa construção que tem por base os valores referenciais do Estado Novo. O retorno às tradições e o culto das figuras heroicas durante a República serviram, segundo Maria Isabel João (2002, p. 635), para legitimar a ideia de uma “revivescência nacional” perante uma realidade nacional marcada por um contexto de crise. Assim, as representações formuladas sobre a Pátria portuguesa não cortam com as que são construídas durante o período republicano, embora adquiram contornos de grandiosidade e sejam marcadas por uma mística de cruzada. Identificam-se figuras do passado cuja ação se considera superior e transpõem-se as suas virtudes para o tempo presente e para um homem que as personifica: Salazar. A conceção de Pátria aparece associada à fundação e consolidação da nacionalidade portuguesa, formulada num tempo histórico e num espaço próprio. A delimitação espacial é feita em termos da Geografia Física, incluindo Portugal e o seu Império, mas é também representada mediante o recurso ao sistema corporativista do Estado Novo, afirmando-se como núcleos espaciais privilegiados: a família, a casa, a escola e o meio local de residência (Bivar, 1975). A Pátria representa-se como uma grande família à qual continua a ser reservado o papel de mãe, pois ela é a fonte de origem de todos os portugueses. Esta definição comporta necessariamente elementos subjetivos, entrando-se na esfera psicológica quando se reporta ao caráter emotivo que está subjacente ao processo de socialização (Abrantes, 2011). Os portugueses devem ter sempre presentes, no seu espírito, a alegria no trabalho, a devoção ao chefe e o amor a Deus, à Pátria e à Família. A ideia de Pátria aparece na Escola Portuguesa, geralmente assimilada à ideia de Nação. O conceito de Nação utilizado transporta a história da construção da nacionalidade portuguesa para o presente, uma vez que os elementos que a individualizam, ao longo do tempo, se reportam ao seu passado histórico:
A Nação Portuguesa constitue uma realidade de oito séculos de existência, que se criou e desenvolveu ao calor dos ideais que nortearam a civilização do ocidente europeu. Os habitantes desta faixa atlântica, cedo diferenciada e personalizada – na língua, nas manifestações do sentimento e da actividade civilizadora (…). (Escola Portuguesa, 11 de outubro de 1934, p. 5)
A conceção de família construída pelo Estado Novo também tem os seus
alicerces num tempo histórico e místico associado à importância dada a Deus.
Na Lição de Salazar “Deus, Pátria, Família”, representa-se a imagem
da família salazarista modesta que vive num espaço rural, local privilegiado
para a vivência e o culto das virtudes morais, procurando-se assim
desencorajar o êxodo rural para o espaço urbano associado ao desemprego, ao
individualismo e à dissolução de costumes (Escola Portuguesa, 16 de
abril de 1936, pp. 176-178). A ideia de Deus encontra-se associada à
nacionalidade portuguesa desde a sua fundação. O espírito de cruzada esteve
presente na Reconquista e prolongou-se através da Expansão, devendo ser
ensinado, na escola, através de uma educação de moral cristã. O
providencialismo é transposto para o tempo presente e ancora-se na imagem de
Salazar, através da apologia das suas virtudes morais e da apresentação da
sua ação governativa como revestida de uma dimensão mística e de caráter
legitimador, pois ele é o homem que “Deus deu à pátria” e a quem se deve
obediência (Escola Portuguesa, 1 de maio de 1941, p. 547). A
dilatação da fé é apontada nos textos da Escola Portuguesa como o
motor da Expansão e ilustrativa do universalismo e da missão civilizadora de
Portugal, no passado e no presente. Esta questão aparece, nos textos do
boletim, como sendo o justificativo da independência e da individualidade
portuguesa face ao resto da Europa. A Batalha de Aljubarrota é apresentada,
neste contexto, como o acontecimento que decidiu o “destino” português:
Por ela voltámos um dia, magnificamente, as costas à Europa, debruçando-nos para os mistérios do mar, no sonho das desconhecidas estradas da civilização que íamos descobrir, e nos pudemos alhear das guerras civis e de religião que, durante séculos, desperdiçaram as forças criadoras das nações europeias e esfarraparam a túnica inconcussa do Salvador (…). (Escola Portuguesa, 8 de agosto de 1935, pp. 787-788)
No presente é o espírito de revolução cristã que fortalece os portugueses e lhes possibilitará combater a ameaça comunista, levando Portugal a içar a “bandeira da cristandade contra o comunismo ateu” (Escola Portuguesa, 8 de setembro de 1938, p. 542).
A ação dos reis da primeira dinastia é valorizada na Escola Portuguesa, com particular destaque para D. Afonso Henriques a quem se deve a fundação da nacionalidade e o início do processo de dilatação da fé. A sua ação é continuada pelos reis seguintes, destacando-se as temáticas ligadas aos processos de reconquista, povoamento e organização económica e social do território, sempre coadjuvados pelas ordens religiosas. É também a estes reis que se deve um conjunto de ações que possibilitaram a epopeia dos Descobrimentos. Estas lições revestem-se de um carácter moralista e cívico e expressam-se em discursos oficiais de Salazar e, de forma ainda mais acentuada, em discursos de Carneiro Pacheco: “Grande lição de história, a que nos vem do esforço edificador dos primeiros Reis, em ação vigorosa e perseverante para a fixação de fronteiras e sua defesa, (…) para a formação do espírito e da unidade da Nação” (1940, p. 370).
A Revolução de 1383-1385 e a Batalha de Aljubarrota são marcos importantes assinalados com regularidade na Escola Portuguesa. Estes acontecimentos expressam a liberdade e a independência da Nação portuguesa face a Espanha. D. João I e D. Filipa de Lencastre configuram-se como os pais de uma geração que glorificou Portugal através da Expansão e da formação do Império Português: “D. João I e seus filhos realizam a expansão do nosso pensamento missionário e, por eles, descobrimos novos mundos, onde abrimos numerosas artérias que permitiram a circulação da civilização europeia, cristã, até aos pontos mais remotos do globo” (Escola Portuguesa, 18 de abril de 1940, p. 426).
Um discurso de Carneiro Pacheco, nas comemorações da Batalha de Aljubarrota,
em 1935, comparava esta vitória com o triunfo do movimento militar do 28 de
maio. O ambiente vivido na corte de D. Fernando representava metaforicamente
o clima de instabilidade da República e D. Nuno Álvares Pereira representava
Salazar, envolto numa mística de guerreiro e de santo, que se dedica à
Pátria e por ela se sacrifica em prol do ressurgimento nacional (Pacheco,
1940, pp. 179-193). A individualidade portuguesa é ainda marcada pelo
movimento de Restauração da Independência de 1 de dezembro de 1640, o
acontecimento histórico com mais referências na Escola Portuguesa.
Este acontecimento é objeto de valorização desde o século XIX e será
utilizado pelo Estado Novo como referencial simbólico do processo político
iniciado pela Ditadura Militar e que porá termo, tal como aconteceu em 1640,
a um período de decadência da responsabilidade do liberalismo:
1640 foi o levantar do túmulo dum corpo que apenas dormia, perante o pasmo dos que o julgavam morto. O liberalismo-maçónico, a decadência pelo envenenamento da inteligência e pela corrupção dos sentimentos. O Estado Novo, a oxigenação do ar que nos asfixiava, a consciência a retomar o caminho da prosperidade e da grandeza, o génio construtivo de Portugal a afirmar ao mundo a sua imortalidade.(Escola Portuguesa, 18 de abril de 1940, p. 427)
O culto dos heróis é importante nos textos deste boletim. Este culto já era visível durante o período republicano e encontra-se associado a um processo de legitimação do poder político através da História (João, 2002, p. 635). O mesmo se verifica no decurso deste processo de consolidação do Salazarismo, afirmando-se este culto na Escola Portuguesa: “Neste momento histórico de regresso aos sublimes ideais de resgate nacional, os heróis, os santos e os guerreiros (…), filhos da terra portuguesa ressuscitam dos túmulos para o milagre de uma nova epopeia” (Escola Portuguesa, 7 de fevereiro de 1935, p. 307).
Os heróis do passado ganham vida no presente ao modelarem a conduta da mocidade portuguesa. Assim como eles serviram e se sacrificaram pela Pátria, também as crianças deverão viver nestes princípios e, mais tarde, tornar-se agentes propagandísticos do regime. No entanto, é acentuado que a heroicidade implica sempre o espírito de sacrifício e de obediência ao chefe, questão expressa regularmente no contexto da Segunda Guerra Mundial (Escola Portuguesa, 3 de dezembro de 1942, pp. 183-184). Destacam-se as figuras de D. Afonso Henriques, de D. João Mestre de Avis, de D. Nuno Álvares Pereira e do Infante D. Henrique como símbolos do espírito de dedicação à Pátria e da fé cristã.
Em nome da “verdade histórica que convém à nação” reabilitam-se personagens da História de Portugal, nomeadamente D. João III, D. Sebastião e D. João IV. A personagem mais valorizada, neste processo de reabilitação, é a de D. João III, figura que Sérgio Campos Matos (1990, p. 150) apresenta como o anti-herói dos historiadores liberais. Este monarca retomou o espírito missionário português, sendo um homem piedoso e culto, e foi graças a ele que a Companhia de Jesus veio para território português. Os jesuítas são o exemplo dos “bons portugueses” com o seu espírito missionário. A introdução da Inquisição em Portugal é justificada pela manutenção da unidade dos portugueses, ameaçada pelas guerras provocadas pelo Protestantismo (Escola Portuguesa, 13 de agosto de 1936, pp. 314-317). A ação de D. Sebastião é enquadrada dentro do movimento de dilatação da fé e lembra-se que foi graças ao sebastianismo que se restaurou a independência em 1640. D. João IV é apresentado como um homem movido pela prudência no período que antecedeu a Restauração da Independência. É elogiado por possuir essa virtude e destaca-se, em vários textos, o seu papel político e diplomático na consolidação da independência. Os reis da primeira dinastia são todos valorizados, referindo-se, por exemplo, que D. Afonso IV só ordenou a morte de D. Inês de Castro devido à ameaça de perda de independência e por maus conselhos.
O Marquês de Pombal (1699-1782) simboliza uma conduta desviante, embora seja tratado de forma diferenciada nos textos analisados, que vão desde a completa rejeição do seu governo a simples críticas relacionadas com sua ação contra os jesuítas. O liberalismo merece amplo tratamento, sendo apresentado sempre como um período de dissolução, responsável pela introdução das ideias da Revolução Francesa em Portugal, que rompeu com a tradição e com a vocação católica da Nação portuguesa. Neste período destaca-se a reabilitação feita a D. Miguel que, ao contrário do irmão D. Pedro, simboliza o regresso à tradição através da instauração do absolutismo, justificando-se que esse regresso resultou da aclamação das Cortes que representavam a vontade da Nação.
A escola e a Mocidade Portuguesa deverão, com base nas orientações do Estado, desenvolver atividades que privilegiam a apologia e o culto dos heróis nacionais. A História é ritualizada pelo Estado desde os fins do século XIX, organizando-se rituais que simbolicamente reafirmam a continuidade histórica dos portugueses (Catroga, 1998, pp. 256-257). Estas ritualizações não apresentam um corte com o período republicano, muito embora estas atividades deixem de ser organizadas por particulares e se centralizem no Estado (João, 2002). A escola primária será responsável pela organização de práticas culturais, sempre definidas e orientadas pelo Ministério, no sentido de criarem uma consciência nacional, como as comemorações e as festas escolares. Estes acontecimentos são abertos à comunidade, com o objetivo de que a escola exerça a sua influência nas comunidades rurais, onde se encontra uma base de apoio do regime e se promove a socialização: “ a escola tomou, na maioria dos meios rurais, a dianteira dos movimentos de carácter nacional, as populações colaboram com ela, aceitam a sua chefia, de modo a que as suas festas se tornaram autênticas festas do povo” (Escola Portuguesa, 27 de fevereiro de 1936, p. 133).
No âmbito dos acontecimentos que são objeto de celebração anual nas escolas, destacam-se a Restauração da Independência Portuguesa, a Revolução do 28 de maio, as comemorações ligadas aos aniversários da tomada de posse de Salazar da pasta das Finanças e da Presidência do Conselho, a eleição de Carmona para a Presidência da República e o aniversário do nascimento de Salazar. A partir de 1936 noticia-se, com bastante destaque, todas as cerimónias que decorrem por todo o país aquando da “entronização do crucifixo nas escolas”. O carácter performativo destas práticas (Abrantes, 2011) opera-se ainda através de rituais como a saudação à bandeira portuguesa e o cantar do Hino Nacional, atividades que são diárias e obrigatórias nas escolas portuguesas. É ainda operacionalizado através das práticas de afixação e de ensino dos cartazes da Lição de Salazar, assim como através da presença, na sala de aula, dos retratos dos dois heróis do tempo presente: Carmona e Salazar. Finalmente, as Comemorações do Duplo Centenário (1140, nascimento de Portugal, e 1640, Restauração da Independência) e a Exposição do Mundo Português, em 1940, também serão vivenciadas no espaço escolar, promovendo-se a semana do professor na Exposição. A propósito das visitas dos professores à Exposição, relembra-se-lhes, e de forma insistente, através de normativos de orientação e de discursos, o seu papel de “apóstolos de almas” (Escola Portuguesa, 19 de dezembro de 1940, pp. 197-198).
Em plena Segunda Guerra Mundial, e como afirmação da obra de ressurgimento nacional do Estado Novo, comemora-se a história do nacionalismo português em três planos complementares: a Fundação, a Epopeia e a Colonização. A Exposição representa a apoteose do regime e será fortemente imbuída de uma mística de providencialismo sobre as origens de Portugal. Todos os referenciais simbólicos presentes na exposição são significantes do ideário nacionalista e colonial do regime salazarista (João, 2002, pp. 32-33). As cerimónias de entrega de medalhas a professores e as conferências realizadas, em várias regiões, podem também ser inseridas nestas práticas, pois são um exemplo de práticas culturais que visam a inculcação ideológica de uma memória nacional construída pelo Estado Novo e com a qual se pretende modelar o ser social dos docentes, regulamentar a sua conduta e promover a sua identificação com o Estado-Nação.
3.3. As “Lições de História” de Portugal do Professor Silvestre Figueiredo
na Escola Portuguesa
As “Lições de História de Portugal” da autoria de Silvestre Figueiredo
representam um discurso pedagógico ligado ao pensamento oficial do regime e
constituem uma parte importante dos artigos dedicados à História de Portugal
na Escola Portuguesa. Consideradas pelo autor como uma revisão
histórica, são publicadas entre os anos letivos de 1937-1938 e 1939-1940,
num total de 33 lições que se iniciam com o “Condado Portucalense, D.
Henrique e D. Teresa” e terminam com “O Estado Novo – Salazar”. Este
conjunto é completado por mais três lições que são exemplo do seu pensamento
nacionalista e cristão: “ Deus”, “Noção de Pátria” e “ Noção de Vassalagem”.
Na última lição publicada, é feita referência a novos textos, o que não virá
a concretizar-se, registando-se apenas uma colaboração muito pontual, no
sentido da defesa do espirítico nacionalista da escola primária. Esta
ausência deverá estar relacionada com as novas funções pedagógico-políticas
que Silvestre de Figueiredo desempenhará: adjunto do Diretor Escolar de
Braga, Diretor Escolar em Faro, Braga e Castelo Branco e Inspetor Orientador
(a partir de 1945).
As suas lições inspiram-se na metodologia pedagógico-didática de Decroly, embora contextualizada pelo pensamento que preside à política educativa estadonovista, e recorre ao método de ensino cronológico-regressivo. O plano individual de cada aula termina habitualmente com exercícios de expressão oral e escrita, de expressão dramática ou plástica. As 33 lições que apresenta têm sempre como centro de interesse a afirmação de que “Portugal não é um país pequeno”, observação sempre suportada pelo recurso a mapas de Portugal e dos seus territórios ultramarinos. Apresenta uma história organizada por épocas e não por reinados, embora acentue e dedique planos individuais de aula a reinados ligados à fundação e consolidação da nacionalidade e à dilatação da fé. A compartimentação que faz destas lições é ditada por fatores pedagógicos e essencialmente por fatores políticos[10]. A ligação entre História e Ideologia é clara nos seus textos, referindo que o importante não é produzirem uma visão intelectual da História, mas antes emotiva, tendo em consideração o caráter formativo do seu ensino (Escola Portuguesa, 16 de novembro de 1939, p. 99). A sua intenção é a de formular um juízo de valor sobre os factos da vida portuguesa, ação que considera ser um reflexo de uma cultura patriótica.
Nos seus textos ressaltam, de forma bastante acentuada, os acontecimentos da Guerra Civil de Espanha. Luís Reis Torgal (2009, pp. 305-306) refere que estas lições refletem a atualidade trazida por este conflito à cruzada anticomunista e à refutação de uma possível federação ibérica defendida pela República Espanhola. A cruzada contra o “comunismo ateu” perpassa por várias das suas lições, opondo sempre a revolução cristã à bolchevista. As suas lições começam com a fundação do Condado Portucalense, demonstrando que a Pátria foi desde o início um país cristão, território oferecido por um rei cristão a um cavaleiro cristão (Escola Portuguesa, 8 de fevereiro de 1940, pp. 277-279). Os muçulmanos são comparados com os bolchevistas e a ação dos cavaleiros da Reconquista é transposta para o presente quando a compara com a atual preparação militar dos Viriatos que irão combater em Espanha. A História nacional é toda estruturada na fé cristã, prevalecendo a descrição dos acontecimentos políticos e religiosos sobre os factos económicos e culturais. As comparações com o meio local são sempre extraídas da vivência rural, valorizando-se a atividade agrícola que se associa ao desenvolvimento do país: Salazar é o bom administrador de terras enquanto o Marquês de Pombal representa o mau administrador que não respeita os trabalhadores da sua propriedade.
A Revolução de 1383-1385 é usada para apresentar os “grandes homens” ligados à estruturação da História Nacional na fé cristã: Mestre de Avis, João das Regras e o “génio” de Nuno Álvares Pereira. Estas figuras servem para justificar que Deus, em épocas de dificuldade, coloca “grandes homens” à frente dos destinos do País, como o fez na atualidade com Salazar (Escola Portuguesa, 3 de novembro de 1938, pp. 61-62). O elemento providencialista continuará a estar presente na epopeia da Expansão, uma vez que só a dilatação da fé justifica, na sua opinião, que Portugal, sendo um país grande e com tanta riqueza, tenha decidido aventurar-se no desconhecido (Escola Portuguesa, 10 de novembro de 1938, p. 70). Reabilita a figura de D. João III como o grande governante que venceu o fanatismo religioso do Protestantismo. A Revolução de 1640 põe termo a um período de decadência e compara D. João IV, nas suas responsabilidades governativas, a Salazar, personificando Miguel Vasconcelos[11] todos os traidores atuais da Pátria portuguesa. Dedica um conjunto de nove lições ao período liberal, refutando os ideais da Revolução Francesa e o seu espírito ateu, assim como defende que a ideia de liberdade deve ser sempre empregue como sinónimo de obediência. Valoriza apenas, neste período, D. Miguel, como o rei que recupera a tradição portuguesa, as campanhas de África e o espírito heroico dos portugueses que se sacrificaram na I Guerra Mundial. A última lição é dedicada a Salazar, exemplo do bom português enquanto filho, estudante, cidadão e governante.
Ao compararmos o plano destas aulas com os conteúdos dos manuais escolares, teremos de considerar que estes são também veículo de um sistema de valores, como refere Sérgio Campos Matos (1990, pp. 48-50), sendo o suporte básico dos conteúdos programáticos do currículo. Para além disso, há que considerar o facto de o seu público-alvo ser diferente, uma vez que os seus destinatários são, em última instância, os alunos. Selecionamos intencionalmente a História da Pátria Portuguesa, de Estefânia Cabreira e de Oliveira Cabral, como exemplo de um manual aprovado oficialmente, e a História de Portugal,de Tomás de Barros, que, embora não aprovado oficialmente, era o compêndio mais usado, nos anos 40, nas escolas portuguesas (Torgal, 2009, pp. 294-295). Na realidade, nas escolas circulavam várias publicações não aprovadas oficialmente e algumas eram mesmo indicadas por inspetores orientadores que as recomendavam a troco de favores que recebiam das editoras (Pinheiro, 1999, p. 43). Estes dois manuais abordam, numa parte introdutória, o período de fixação dos primeiros povos na Península Ibérica e os contactos com os povos do Mediterrâneo, conteúdos que tinham sido retirados do programa no período da Ditadura, e terminam ambos com o movimento militar de 28 de maio de 1926. O manual de Tomás de Barros reflete mais a ideologia do regime, embora a parte cronológica apresente um peso excessivo relativamente ao compêndio de Estefânia Cabreira. A questão da memorização excessiva no ensino era criticada na Escola Portuguesa. Só em 1951, Tomás de Barros solicitará a aprovação oficial do seu compêndio, sendo o relatório de análise elaborado pelo inspetor orientador Silvestre de Figueiredo. No seu parecer, ressalta a importância dada à religião cristã na história portuguesa, questão que esteve sempre presente nas suas lições publicadas na Escola Portuguesa. O inspetor considera que o autor do manual se preocupa com o “influxo religioso” determinante da Independência e da Expansão portuguesas, mas refere que este deveria acentuar o antagonismo das crenças entre cristãos e muçulmanos e salientar a natureza do poder do Papa. Critica ainda o facto de Tomás de Barros não analisar as ideias importadas de França para explicar as lutas liberais, bem como lhe faltar um juízo condenatório ao assassinato de Sidónio Pais. Finalmente, o inspetor considera que o compêndio deve ser valorizado e, num exemplar, procede a cortes e a alterações no texto, eliminando grande parte da cronologia e as recapitulações de matéria (AH- ESELx, Livro 16 – E, nº 488, fl 150, 21-III-51). Este relatório de Silvestre Figueiredo é assim exemplo do espírito nacionalista e de dilatação da fé que é característico dos seus textos publicados na Escola Portuguesa.
4. Conclusão
A Escola Portuguesa, entre 1934 e 1946, foi o meio de comunicação
privilegiado entre o Ministério e o professorado primário, desempenhando
funções ligadas à orientação pedagógica e à doutrinação política. Através
dos seus artigos, procurou-se controlar as práticas educativas e proceder à
inculcação ideológica dos agentes do ensino primário. A definição de uma
política educativa de cariz autoritário e nacionalista, assente num projeto
de formação integral, iniciada por Cordeiro Ramos e estruturada por Carneiro
Pacheco, levará à intensificação das atividades de controlo e de inculcação
ideológica junto do professorado. Através de práticas discursivas
procurava-se ultrapassar as dificuldades que limitavam o raio de ação e a
eficácia das atividades inspetivas do Ministério, e que não permitiam
ultrapassar os condicionalismos geográficos que isolavam muitos dos
professores colocados em meios rurais.
A escola primária é usada pelo Estado Novo para formar a consciência
nacional. Este boletim é um meio de expressão de uma imagem de
identidade nacional construída pelo aparelho ideológico do Estado Novo. O
discurso nacionalista fornecerá, aos professores, os valores referenciais de
um sistema político unitário e totalizante, construído em torno da dicotomia
Estado-Nação. A História, a memória e a Nação complementam-se e legitimam o
poder político, sendo usadas para reforçar os laços identitários dos
indivíduos com o projeto político do Estado Novo. O lugar da História na
Escola Portuguesa e no projeto ideológico do regime é um facto durante o
período de nascimento e consolidação do regime, sendo fortemente
influenciado pela conjuntura internacional, nomeadamente pela Guerra Civil
de Espanha e pela Segunda Guerra Mundial. Acontecimentos e figuras da
História portuguesa são trazidos para o presente e funcionam como
referenciais simbólicos que orientam e modelam o comportamento dos
portugueses. O relevo dado à História nas práticas culturais e nas páginas
da Escola Portuguesa não encontra paralelo num sistema de ensino
redutor e destinado às massas, assistindo-se à simplificação dos programas e
até mesmo ao seu desaparecimento da estrutura curricular do ensino primário
elementar. A alternativa proposta é, dentro de uma perspetiva de uma
“metodologia global”, fornecer os conhecimentos básicos da História pátria e
do espírito colonial através das disciplinas que integram o currículo, assim
como promover o recurso a ritualizações que despertem a consciência nacional
e reafirmem a continuidade histórica da Nação. As lições de História de
Portugal do professor Silvestre de Figueiredo são exemplo da
complementaridade existente nos artigos da Escola Portuguesa entre as
dimensões pedagógica e política. Os seus artigos constroem representações de
um sistema unitário e integrador, sendo a identidade nacional estruturada em
torno dos referenciais de um Estado-Nação, um Chefe e um Império Colonial. A
consolidação do regime levará à secundarização do lugar da História nas
páginas do boletim, a partir do ano letivo 1941-1942, uma vez que a sua
apropriação ideológica estava ligada à legitimação do Estado Novo e à
operacionalização do seu projeto político-ideológico junto do professorado
primário.
Fontes e Bibliografia
1. Fontes
1.1. Fontes de Arquivo
Arquivo Histórico da Escola Superior da Educação de Lisboa [AH- ESELx]
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1915-1926.
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– 1934.
Actas do Conselho Escolar da Escola do Magistério Primário de Lisboa,
1943 - 1950.
Livro 16 – E, nº 488, fls 150, 21-III-51.
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Contacto: Maria Paula Pereira, Rua Belo Maques nº 1, 2º C, 1750-409 Lisboa, Portugal
(recebido em outubro de 2013, aceite para publicação em fevereiro 2014)
NOTAS
[1] Ver, por exemplo, o trabalho de Guedes, L. (1998). Escola
Portuguesa (1934-1957), Sobre Política Educativa do Estado Novo.
(Dissertação de mestrado, Instituto de Educação da Universidade do
Minho, Braga).
[2] A designação “alunos-mestres” é utilizada pelos professores da
Escola do Magistério Primário de Lisboa e corresponde aos discentes da
escola.
[3] Esta questão poderá ser analisada através da consulta de relatórios
de estágio de professores primários, assim como mediante a análise dos
relatórios de ações inspetivas, embora tendo sempre em consideração que
estes últimos documentos expressam o discurso político e pedagógico do
regime sobre educação.
[4] Nos manuais escolares é visível, de forma marcada, a “apologia da
ruralidade”. Na Escola Portuguesa, esta questão também é expressa
quando se advoga que os professores devem contrariar o êxodo rural,
enaltecendo as vantagens da vida no campo e frisando os aspetos
negativos da vivência urbana. Em termos de didática, não se encontra
nenhuma referência ao espaço urbano e à sua vivência. Pelo contrário,
são sempre utilizados exemplos e acontecimentos do meio rural.
[5] Entrevista publicada no Diário da Manhã, de 27 de fevereiro
de 1937. In Pensamento e Doutrina Política, Textos Antológicos,
p. 74.
[6] O mapa “Portugal não é um país pequeno” representa as fronteiras
políticas de alguns países da Europa. Sobreposta a estes países, surge a
representação das colónias portuguesas. Ver o trabalho de VIEIRA,
Patrícia. (2010). O Império como fetiche no Estado Novo: Feitiço do
Império e o Sortilégio Colonial. In Portuguese Cultural Studies,
Vol. 3, 126-144.
[7] Na Escola Portuguesa aparece com regularidade a designação
de “globalização” em vez de “método global”.
[8] Ver o Decreto 14417, de 12 de outubro de 1927, o Decreto 16077, de
26 de outubro de 1928 e o Decreto 16730, de 13 de abril de 1929.
[9] Nos Livros de Leitura da 3.ª e 4.ª classes existem muitas
referências a figuras e a acontecimentos ligados à História de Portugal,
nomeadamente da Primeira Dinastia e da Expansão Portuguesa.
[10] Relativamente à influência exercida sobre os programas do ensino
liceal, ver o trabalho de MATOS, Sérgio Campos. (1990). História,
Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso dos Liceus
(1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, p. 43.
[11] Miguel de Vasconcelos e Brito (1590-1640) foi Secretário de Estado
em representação do rei D. Filipe IV de Espanha durante o período da
Monarquia Dual. Foi acusado de servir os interesses espanhóis em
Portugal.