ARTIGOS
Experiência, transformação social e currículo escolar: contribuições de Paulo Freire
Andréa Rosana Fetzner
Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO akrug@uol.com.br
Resumo
O
ensaio é motivado pelo debate sobre quais seriam os conhecimentos a serem trabalhados
em nome de uma qualidade educacional. Estes conhecimentos, muitas vezes tomados
como básicos e universais, são entendidos, em algumas propostas que se reforçam
por meio das políticas avaliativas de larga escala, como responsáveis pela
melhoria dos resultados da educação. Para realização do contraponto à forma
como o conteúdo programático da educação é ainda hoje percebido, são resgatadas
algumas contribuições de Paulo Freire ao construir sua proposta de educação
libertadora: o humanismo, como o compromisso radical com o homem concreto rumo à
promoção da transformação social; a práxis, como a capacidade de atuar e
refletir na direção das finalidades objetivadas coletivamente; e a síntese
cultural, como o novo conteúdo da educação, comprometido com o ser mais
de educadores e educandos que, mediados pelo mundo, tentam o refletir/reconstruir
de forma crítica, compartilhando compreensões.
Palavras-chave: educação libertadora, práxis, conteúdo programático da educação
Abstract
The
paper is motivated by the debate on what are the skills to be worked on behalf
of an educational quality. These concepts, often taken as basic and universal,
are understood in some proposals that use them as a tool to reinforce
themselves through the evaluation of large-scale policies, as responsible for
improving education outcomes. To perform the counterpoint to how the program
content of education is still perceived, some contributions of Paulo Freire were
used when building his proposal of a liberating education: humanism, as the
radical commitment to the concrete man towards the promotion of social
transformation; praxis, as the ability to act and think toward the collectively
objectified goals; and the cultural synthesis, as a new content of education,
committed to the being more of educators and learners, who mediated
by the world, try to reflect/rebuild critically, sharing understandings.
Key words: liberating education, praxis, programmatic content of education
Resumé
L´essai est
motivé par le débat consacré aux connaissances à travailler au nom d´une
qualité éducative. Ces connaissances, très souvent vues comme fondamentales et
universelles, sont comprises, selon certaines propositions qui se basent sur
des politiques d´évaluation à grande échelle, comme étant responsables des
améliorations des résultats de l´éducation. En contrepoint de la manière dont
le contenu du programme de l´éducation est encore perçu aujourd’hui, quelques
contributions de Paulo Freire sont dégagées lorsqu´il construit sa proposition
de l´éducation émancipatrice: l´humanisme, comme engagement radical de l´homme
concret vers une transformation sociale ; la praxis, c´est-à-dire la capacité à
agir et à réfléchir collectivement vers des finalités objectives; et la
synthèse culturelle, le nouveau contenu de l´éducation, investi grâce au
potentiel des éducateurs et apprenants qui, médiateurs à travers le monde,
essaient de réfléchir de façon critique, en partageant des idées.
Mots
clés: éducation émancipatrice, praxis, contenu
de programme éducatif
EXPERIÊNCIA, TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E
CURRÍCULO ESCOLAR: CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE
Este ensaio, partindo da apresentação de aspectos que consideramos atuais na obra de
Paulo Freire (1975, 1985) propõe algumas notas reflexivas sobre a experiência e
o currículo escolar, especialmente sobre suas potencialidades em relação a
projetos educacionais que se pretendam comprometidos com a transformação
social. Para isto, retomamos reflexivamente duas obras do autor: Pedagogia do
Oprimido [1] (175) e Educação e Mudança [2]
(1985), e apresentamos algumas experiências, no Brasil, de propostas
educacionais desenvolvidas assumidamente com referências nas contribuições de
Freire.
Os textos de Paulo Freire foram escolhidos pela sua atualidade em relação ao momento político em que vive a escola e pelo entendimento crítico que temos às demandas que se apresentam ao processo de escolarização. Em tempos de PISA e da intensificação da política de exames externos sobre o desempenho escolar, aspectos da obra analisada ajudam-nos a compreender as relações entre a educação escolar praticada e a educação escolar que conseguimos perceber como praticada e indicam elementos que, acreditamos, podem contribuir para a concepção de uma educação escolar relevante para a transformação social pretendida.
Limites do ensino na educação escolar que praticamos
Como se perguntava Iturra (2009)
a questão está em saber se é mais útil para a reprodução do grupo que os novos reproduzam o saber; ou que entendam a necessidade dele por meio de praticar a sua utilidade. O primeiro seria ensinar o que já se tem, subordinada à letra do que já se possui como explicação da natureza e das relações entre os homens; o segundo seria aprender o processo que dinamiza as operações pelas quais a mente humana resolve uma questão cada vez que uma problemática se lhe coloca. (p. 1)
Tentando resolver o problema, Iturra construiu definições conceituais diferentes de “ensino” e “aprendizagem”, dizendo ser o ensino
a prática de transferir conhecimentos provados ou acreditados pela população que educa à população que se estima desconhecer as formas, estruturas e processos que ligam as relações sociais com as coisas: a prática de fixar o esteriotipo do social, seja resultado da investigação ou da ideologia, é a que predomina ainda no processo educativo cristão e muçulmano. (2009, p. 2)
Tentando resolver o problema, Iturra construiu definições conceituais diferentes de “ensino” e “aprendizagem”, dizendo ser o ensino E definindo a aprendizagem como “a prática de colocar questões por parte da população que ensina, que envolvem alternativas de respostas, à população que começa a entender o funcionamento do mundo, onde a resposta encontra o iniciado, não sendo a sua atividade substituída pelo iniciador” (idem, p. 2). Iturra (2009) situa a diferença entre ensino e aprendizagem na dinâmica entre as pessoas que estão no processo de educação: ou se encontram em um processo onde algumas impõem às demais o que entendem como conhecimento ou se encontram em um processo de interrogação mútua, onde todos se mobilizam na busca de respostas, ainda que provisórias, sobre questões que se mostram relevantes no presente. São processos que desencadeiam relações diferentes. À escola cabe refletir sobre quais processos deseja desenvolver: o que propomos fazer na escola? Ensinar (entregar ao outro ou nele imprimir) a letra morta dos conhecimentos já construídos ou provocar o questionamento frente à vida, levantando problemas que se apresentem como relevantes, para os quais precisamos colocar em ação conhecimentos que circulam no grupo social?
O trabalho de Paulo Freire pode nos ajudar a compreender a complexidade de uma relação horizontalizada entre professores e estudantes (educadores/educandos) que, portanto, se fundamentariam em um conceito mais próximo da aprendizagem do que do ensino. A implicação do entendimento de aprendizagem como mobilização do sujeito em direção à solução de um problema atribui aos sujeitos autoria (e ação), rompendo com a imagem de um suposto receptáculo de informações.
Freire (1975), ao definir a pedagogia do oprimido, no livro que leva este título diz: “A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação, tem suas raízes [...] nos próprios oprimidos que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos [...]” (p. 56) No esforço por destacar que a libertação não é um ato salvacionista de alguém (educador) sobre outra pessoa (educando), continua o autor:
A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertária, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação. (p. 57)
A pedagogia dos homens em processo de permanente libertação traz em si a dinâmica de uma educação que pretende superar o conceito de transmissão de conhecimentos (ou conteúdos específicos da educação) como orientador da educação praticada. A obra é a denúncia da educação bancária e o anúncio da relação horizontal entre educadores e educandos. Nesta obra Feire constrói a imagem da educação bancária em oposição à educação libertadora:
a razão de ser da educação libertadora está no seu impulso inicial conciliador. Daí que tal forma de educação implique na superação da contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos.
Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio”, a “educação bancária” mantém e estimula a contradição. São características da educação bancária:
a) O educador é o que educa; os educandos, que são educados.
b) O educador é o que sabe; os educandos os que não sabem.
c) O educador é o que pensa; os educandos, os pensados.
d) O educador é o que diz a palavra; os educandos a escutam docilmente.
e) O educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados.
f) O educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição;
g) O educador é o que atua: os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador.
h) O educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele.
i) O educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele.
j) O educador, finalmente, é o sujeito do processo, os educandos, meros objetos. (pp. 84 - 85)
Desafios como superar o entendimento do outro (estudante) como aquele que não sabe, ainda estão presentes na relação pedagógica. Evidentemente, em relação a muitos dos conteúdos escolares, os estudantes não possuem o conhecimento que a escola quer lhes oportunizar: o uso formal da língua; a sistematização de operações matemáticas, a construção de uma relação mais respeitosa com o ambiente e com as pessoas; todavia, em cada uma destas intencionalidades educativas, o estudante detêm alguns conhecimentos, algumas práticas, algumas compreensões. Pode-se afirmar que, tanto professores quanto estudantes, não detêm todas as compreensões e todos os conhecimentos, mas detêm alguns. Daí porque o ato educativo é genuinamente um ato de diálogo, de conversa, de aprender mais.
É especialmente nos capítulos II e III de Pedagogia do Oprimido que Freire (1975) apresenta a fundamentação da uma concepção problematizadora da educação, comprometida com a superação das contradições educador-educando, sintetizando esta superação na máxima “Ninguém se educa a si mesmo. Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (p. 79). A educação como um ato de diálogo tem, portanto, no mundo em si o objeto deste diálogo. Mundo que conhecemos por meio de nossa experiência: as relações que estabelecemos, as atividades que desenvolvemos, os desejos que perseguimos. Experiências que contêm valores de todo o tipo – exploração, humilhação, individualismo e também colaboração, valorização, coletivismo.
No capítulo IV Freire apresenta sua teoria da ação dialógica e suas características: a colaboração, a união, a organização e a síntese cultural. Sobre a síntese cultural, movimento capaz de superar as contradições educador-educando, diz Freire:
na síntese cultural, os atores, desde o momento mesmo em que chegam ao mundo popular, não o fazem como invasores.
E não o fazem como tais porque, ainda que cheguem de “outro mundo”, chegam para conhecê-lo com o povo e não para “ensinar”, ou transmitir, ou entregar nada ao povo. (...) Na invasão cultural, os espectadores e a realidade, que deve ser mantida como está, são a incidência da ação dos atores. Na síntese cultural, onde não há espectadores, a realidade a ser transformada para a libertação dos homens é a incidência da ação dos atores.
Isto implica em que a síntese cultural é a modalidade de ação com que, culturalmente, se dará frente à força da própria cultura, enquanto mantenedora das estruturas em que se forma.
Desta maneira, este modo de ação cultural, como ação histórica, se apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante.
Neste sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de ser também revolução cultural.” (1975, pp. 255-256, grifos de Freire)
Ao refletir sobre o mundo, e a experiência que nele temos, percebendo sobre a realidade vivida mais do que conseguiríamos perceber sem o diálogo, podemos produzir sínteses culturais entre os que dialogam, sínteses entre aqueles que, juntos, passam a conhecer o que vivem porque exercitam o poder de ver de outro modo e de ver com o outro. Pensar a relação professor e estudante nesta perspectiva, do diálogo e da síntese cultural, representa uma transformação da aula e de sua dinâmica, e uma postura epistemológica respeitosa para com os conhecimentos de experiência feitos.
Provocar a discussão de diferentes entendimentos sobre a experiência e indicar aspectos do currículo escolar e das práticas curriculares que podem se correlacionar com a valorização da experiência das crianças, jovens e adultos na escola; refletir profundamente sobre o que se tem como verdade; pensar criticamente a ciência e aprender ciência fazendo ciência com o povo, embora desejado em algumas propostas político-pedagógicas, é pouco viável em uma escola que:
- tem seu currículo orientado por uma visão restrita na qual, muitas vezes, reduz-se o currículo ao conteúdo escolar;
- organiza-se com o princípio de ensinar a todos como se fossem um (tempos iguais para todos, atividades, explicações e avaliações padronizadas).
A educação bancária, definida por Freire (1975), faz-se em práticas escolares curriculares e didáticas decorrentes de um processo de massificação do ensino onde se elegem os conteúdos básicos a serem ministrados em todas as escolas, divididos, no Brasil, entre os nove anos do ensino fundamental (atendimento de crianças e adolescentes entre 6 a 14 anos). Cada ano escolar acaba por apresentar, quer por uma orientação de rede, quer por uma proposta da própria escola, um rol de conteúdos a serem assimilados pelos estudantes de forma apartada de sua experiência, desconhecendo, na maioria das vezes, sua cultura e seus saberes.
A entrega dos conteúdos aos estudantes, tomados nesta situação como objetos, sustenta-se na ideia de transmissão simultânea de conhecimentos supostamente neutros em sua função política. A transmissão simultânea é, ao mesmo tempo, ato pelo qual um professor ou uma professora, em uma sala de aula, ministra um mesmo conteúdo, com as mesmas atividades, para todos os estudantes ao mesmo tempo, um ritual que conforma toda a prática em sala de aula em uma lógica cultural de obediência. Ao final de um período de dois ou de três meses, esse professor ou professora avalia a aquisição destes conteúdos por meio de provas que resultam em notas ou conceitos.
O fazer docente aliena-se da formação dos estudantes que pretendia acompanhar, fragmenta-se junto com o conteúdo, torna-se repetitivo, e, muitas vezes, reduz o olhar do professor a uma parte de seu próprio trabalho: o professor vê os conteúdos que deve ensinar, em que ponto destes conteúdos se encontra e aonde deve chegar até o final do ano letivo. Direcionado para o ensino dos conteúdos, o professor tende a deixar de visualizar a educação das crianças de forma integral.
As formas de trabalho e os conteúdos da escola, separados de seus sentidos sociais, dos usos da vida cotidiana, conformam a instituição, atribuem-lhe tempos, espaços e conhecimentos que não se comunicam com a vida: organiza-se um tempo padrão, conteúdos pré-definidos e supostamente lineares a serem adquiridos pelos estudantes, avaliações padronizadas e uma didática que traduz o ensino como o ministrar de conteúdos, pelo/a professor/a, para o conjunto dos estudantes. Ao mesmo tempo em que se ensina os conteúdos da escola, negam-se os saberes, as culturas e as linguagens compartilhadas pelos estudantes.
No livro Educação e Mudança (1985), Paulo Freire apresenta seu entendimento sobre o papel do trabalhador social no processo de mudança da sociedade, apresentando conceitos fundamentais do conjunto de sua obra: educação, humanismo, transformação social e práxis. Afirmando que a educação é um processo de saber-se no mundo, e, portanto, um ato de comprometer-se com a sociedade, por meio de sua capacidade de atuar e refletir na direção das finalidades a que se propõe (práxis), Freire (1985) define o humanismo como “um compromisso radical com o homem concreto; compromisso que se orienta no sentido de transformação de qualquer situação objetiva na qual o homem concreto esteja sendo impedido de ser mais” (p. 22).
O argumento de Freire (idem), atual para a compreensão dos desafios da escolarização em tempos de avaliações externas do rendimento escolar, é de que o processo educacional não pode tomar o estudante como ser vazio, a ser preenchido pelos conhecimentos propostos pela escola. Na vida cotidiana, todos nós compartilhamos técnicas e procedimentos empíricos que são manifestações culturais que não podem ser substituídos por outros conhecimentos (técnicos ou escolares), simplesmente por que não é assim que migramos de uma prática cultural para outra. Embora Freire aqui se refira à relação entre técnicos e camponeses e entre professores e estudantes, podemos pensar na potencialidade desse indicativo para áreas como saúde, política, enfim, diferentes ambientes em que as relações sociais acontecem. É contra a tentativa vã de substituir as manifestações culturais (no sentido de sobrepô-las a outras), que Freire desenvolve o conceito de síntese cultural, a ideia de que novas manifestações culturais, e saberes nela contidos, gerados pelo movimento entre culturas, não é mais apenas saber do educando ou saber do educador, mas de ambos que, por meio da práxis, mediatizados pelo mundo, constroem-se sujeitos.
A educação é entendida como um processo em que necessariamente o ser humano é sujeito e não objeto (ele mesmo busca sua educação e pode perceber-se como ser inacabado), portanto, compreendida como processo permanente, Freire concebe a possibilidade de práticas educativas construídas em direção a uma democracia fundamental, fundada no diálogo entre saberes relativos (do camponês e do técnico; do professor e do estudante; do médico e do sapateiro, entre outros). O diálogo entre os saberes relativos teria por finalidade a mudança de percepção do que Freire chama de consciência ingênua, para uma consciência crítica:
Esta mudança de percepção, que se dá na problematização de uma realidade concreta, no entrechoque de suas contradições, implica um novo enfrentamento do homem com sua realidade. Implica ad-mirá-la [3] em sua totalidade: vê-la de “dentro” e, desse “interior”, separá-la em suas partes e voltar a ad-mirá-la, ganhando assim uma visão mais crítica e profunda da sua situação na realidade que não condiciona. Implica uma “apropriação” do contexto; uma inserção nele; não um ficar “aderido” a ele; um não estar quase “sob” o tempo, mas no tempo. Implica reconhecer-se homem. Homem que deve atuar, pensar, crescer, transformar e não adaptar-se fatalisticamente a uma realidade desumanizante. (1985, p. 60, grifos de Freire).
Para o autor, o homem-sujeito é aquele que reflete suas condições espaço temporais de maneira crítica, isto é, aquele que deixa sua condição de objeto, de apenas estar no mundo, para perceber-se nele, entender-se como aquele que atua. Sua tese é de que o processo educacional pode ser tomado como prática da liberdade e não como prática de dominação (educação bancária). E, para ser prática de liberdade, o processo de educação precisa ser fundamentado no diálogo, definido por ele como um método ativo, crítico e criticista (Freire, 1985).
Este diálogo teria como novo conteúdo programático o conceito antropológico de cultura:
a distinção entre estes dois mundos: o da natureza e o da cultura; o papel ativo do homem na sua realidade e com a sua realidade; o sentido de mediação que tem a natureza para as relações e a comunicação dos homens; a cultura como o acréscimo que o homem faz ao mundo que não criou; a cultura como resultado de seu trabalho, de seu esforço criador e recriador; a dimensão humanista da cultura; a cultura como aquisição sistemática da experiência humana, como uma incorporação, por isso crítica e criadora, uma justaposição de informações e descrições “doadas”; a democratização da cultura, que é uma dimensão da democratização fundamental, frente à problemática da aprendizagem da leitura e da escrita, seria, pois, como uma chave com a qual o analfabeto inicia sua introdução no mundo da comunicação escrita. Como ser no mundo e com o mundo. Em seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto. (Freire, 1985, p. 70)
A cultura, em sua dimensão antropológica e como novo conteúdo programático da educação, assenta na discussão da experiência, não uma experiência asséptica do mundo complexo ou apartada da cultura cotidiana, mas aquela experiência que traz em si as complexidades e os saberes da vida social, não essencializada, portanto, na subjetividade. São algumas destas experiências educacionais que tomam a cultura como objeto de trabalho/estudo, que vamos tratar a seguir.
Possibilidades da educação que concebemos: aprendizagens que tomam a experiência como fonte do conhecimento escolar
A sociedade brasileira tem-se configurado, politicamente, com alianças entre as
camadas dirigentes conservadoras e as camadas médias da população, que, aliadas
aos valores conservadores, efetivam um Estado que alija as classes populares
dos direitos que constituem a cidadania (Vieira & Freitas, 2003). Esta
configuração política reflete-se, também, na construção de uma cultura escolar
que afirma linguagens, saberes e culturas adequadas ao sucesso escolar das
camadas dirigentes e médias da população (porque intimamente ligados aos seus
saberes e suas culturas), e que, ao mesmo tempo, negam culturas e saberes
outros (populares).
Por mais difícil que nos pareça, ainda hoje, a educação como um processo que possa afirmar valores de emancipação às camadas populares, as experiências brasileiras em torno dos conceitos de “educação integral” (anos de 1920), “educação popular” (final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960) e ciclos (anos de 1990) foram algumas das que registraram a construção possível de alternativas, que afirmam a escola como espaço de vivência da cidadania, da pluralidade de saberes e de trocas culturais, ou seja, propõem a educação escolar como um processo de apropriação coletiva dos conhecimentos (que também são coletivos).
O ensino primário de quatro anos, por exemplo, no período da Primeira República (tempo em que os concluintes do ensino fundamental eram cerca de 13% dos matriculados) foi alvo de tentativas de mudança: buscando possibilitar a conclusão do ensino primário por uma maior parcela da população, várias reformas pedagógicas tentavam implementar a “Escola Primária Integral”: Lourenço Filho (Ceará, 1923); Anísio Teixeira (Bahia, 1925); Francisco Campos e Mário Cassasanta (Minas, 1927); Fernando de Azevedo (Distrito Federal, 1928); Carneiro Leão (Pernambuco, 1928).
Comentando a reorganização da instrução pública na Bahia, promovida por Anísio Teixeira, Moreira (2007) diz:
Novas perspectivas em relação ao currículo eram evidentes na reorganização da instrução pública na Bahia, promovida por Anísio Teixeira. Pela primeira vez, disciplinas escolares foram consideradas instrumentos para o alcance de determinados fins, ao invés de fins em si mesmas, sendo-lhes atribuído o objetivo de capacitar os indivíduos a viver em sociedade. Tal concepção implicou a ênfase não só no crescimento intelectual do aluno, mas também em seu desenvolvimento social, moral, emocional e físico. (p. 88)
O ideário da Escola Primária Integral propunha desenvolver um ensino que, ligado à realidade sociocultural dos alunos, possibilitasse um conjunto de conhecimentos e habilidades básicas, tais como literatura, história pátria, manejo da língua como instrumento de pensamento e expressão, entre outros (Lei n. 1.846, 1925, Bahia). A motivação da proposta orientava-se por superar o ensino “livresco”, descolado da realidade circundante e ministrado em uma linguagem de pouco acesso às crianças das camadas populares. Este conceito inspiraria, mais tarde, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932.
Também são exemplos de movimentos que trabalharam com outros entendimentos de conhecimento escolar, entre 1958 e 1964, a Campanha De Pé no Chão também se Aprender a Ler, promovida pela Prefeitura de Natal e o Movimento de Educação de Base, no âmbito da Igreja Católica (Goés, 2002). Essas duas experiências tinham em comum o conceito de educação popular, no sentido de uma ampliação da preparação do povo, tanto para a vida como para o trabalho, com base em uma formação política e na valorização dos saberes da cultura popular, para a Campanha, por exemplo, a alfabetização deveria ter como objetivo máximo:
integrar o educando, na sua comunidade, dando para isso a oportunidade de sentir e viver a cultura do seu povo (...). Tal integração deve ter como sentido uma profunda vivência com a problemática da terra, de tal forma que o aluno sinta a realidade regional, estadual e nacional e reflita sobre tais problemas (...). A integração da criança ao meio deve ser atingida através do próprio conteúdo do ensino. Assim é que todo o currículo deve ser desenvolvido através de grandes temas que procurem dar ao aluno uma visão de conjunto com uma interpretação de suas implicâncias no setor social. (Secretaria de Educação, Cultura e Saúde de Natal citado por Germano, 1982, p.144)
A educação popular, entendida como educação libertadora, traz, portanto, uma proposta de ruptura com o ensino livresco, propondo uma escola que se faça com o povo e para o povo, na defesa de seus direitos e saberes (Freire, 1975). A defesa dos saberes do povo como ponto de partida para o diálogo da educação, seu novo conteúdo programático, nos permite compreender que as identidades, as linguagens e o trabalho do povo têm contribuição importante na democratização da escola. As práticas de diálogo com a comunidade, planejamento curricular e avaliações coletivas, ordenação dos espaços e tempos em acordo com as necessidades avaliadas pelo grupo seriam as bases do surgimento de outra cultura escolar.
Neste debate, muito contribuiu Paulo Freire. A crítica ao ensino bancário, e a proposta de educar desde uma perspectiva crítica de mundo, por meio do engajamento do ensino à realidade, são marcas das suas discussões que reaparecem anos mais tarde, após a ditadura militar no Brasil, e terão influência na organização escolar em ciclos, implementada em sua gestão como Secretário de Educação, no município de São Paulo (1989-1992). No Brasil, a organização escolar em ciclos propôs, entre outras medidas, a organização do ensino por meio de questões relevantes aos estudantes, a avaliação escolar como prática emancipatória, isto é, coletiva, dialogada, voltada à reflexão conjunta para melhoria do que se faz, a organização da escola de dentro para fora: horários e espaços organizados considerando o projeto político pedagógico da instituição, com liberdade de organização.
A organização escolar em ciclos orientou-se pelos princípios da educação libertadora de Freire (1975, 1985) e foi desenvolvida em municípios como São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre no Brasil. Estas experiências – de organização escolar em ciclos – se concentraram na década de 90 do século passado, tendo algumas delas avançado até a primeira década deste século. A organização escolar em ciclos permitiu considerar, em termos curriculares e da organização do trabalho pedagógico na escola, a experiência vivida como fonte do conhecimento escolar, por meio de planejamentos escolares que partiam de estudos de realidade, enriquecidos por pesquisas de conhecimentos sistematizados e atividades de aplicação dos conhecimentos escolares à vida cotidiana. Os ciclos consistiram, também, no desdobramento das práticas de democratização da escola, explicitadas numa articulação entre os conceitos de participação e necessidades de desenvolvimento humano por meio do trabalho com um conhecimento escolar relevante para (e na) a vida dos estudantes.
A experiência como conhecimento escolar
Este
trabalho propôs trazer algumas notas reflexivas sobre a experiência e o
currículo escolar, em especial, a relação entre experiência, currículo escolar
e transformação social. Para o desenvolvimento da reflexão tomaram-se as contribuições
de Paulo Freire em duas de suas obras, Pedagogia do Oprimido (1975) e Educação
e Mudança (1985), por condensarem conceitos que, hoje em dia, ainda parecem
significativos e potentes na tentativa de construção de uma escola democrática,
entendendo-a como uma escola que democratize seus espaços, processos de
aprendizagem-ensino e os conteúdos programáticos da educação.
Recuperamos contribuições de Iturra (2009) e Freire (1975, 1985) nos questionamentos sobre o que tomamos por ensino na escola: os limites das práticas de repasse dos conteúdos escolares de forma descontextualizada da experiência dos estudantes, a subalternização de professores e estudantes por meio da reprodução do saber e a consequente redução do sentido da escola por meio da educação bancária.
Nossa intenção foi recuperar as reflexões de Paulo Freire para a superação da educação bancária, que hoje parece ser tomada como modelo a seguir, por meio das políticas internacionais que reduzem a escola a um espaço de reprodução/recitação de conteúdos escolares tomados como fim em si mesmos.
O esforço teórico-prático de Freire, representado na sua experiência de alfabetização de adultos e nos conceitos que articula em sua pedagogia do oprimido, ajuda-nos a indicar que é possível e necessário que se tomem outras práticas em nossas escolas, assim como outros conteúdos programáticos. A cultura, em seu sentido antropológico, e a metodologia do diálogo, por meio da práxis, selam o compromisso com a síntese cultural, superando a invasão cultural (Freire, 1975) sobre a qual assentam as práticas escolares de caráter bancário.
Por fim, apresentamos um breve histórico de experiências brasileiras, entre elas algumas que tomaram as contribuições de Freire para fazerem da educação vivências outras com os trabalhadores e as crianças e jovens em fase de escolarização básica. Referenciamos experiências como a Escola Primária Integral, no início do século passado, a Campanha de Pé no Chão também se aprende a ler, do Movimento de Educação de Base, entre outros e, ao final do século, as experiências de organização escolar em ciclos (município de São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre).
Nosso
argumento é de que a escola pode ser mais do que se apresenta ainda hoje. No
lugar de espaço para recitação de conteúdos descolados do compromisso com uma
sociedade democrática, uma escola que priorize o diálogo com o povo sobre suas
experiências, dedicada a compreender de forma crítica o mundo vivido para que,
percebendo mais sobre ele, possamos, juntos, conceber outra realidade. Uma
escola que, nos dizeres de Freire, possibilite vivenciar a superação da
contradição educador-educando, porque articuladora de sínteses culturais que
nos permitam uma sociedade mais democrática.
Referências:
Lei n°1.846, proposta por Anísio Teixeira e aprovada em 14 de agosto de 1925 para reformar a Instrução Pública do Estado da Bahia. Bahia, 1925.
Freire, P. (1985). Educação e Mudança (10ª ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Freire, P. (1975). Pedagogia do Oprimido (2ª ed.). Porto: Afrontamento.
Germano, J.W. (1982). Lendo e aprendendo: a Campanha de Pé no Chão. São Paulo: Autores Associados/Cortez.
Góes, M. de (2002). Educação popular: campanha de pé do chão também se aprende a ler; Paulo Freire e movimentos sociais contemporâneos. In P. Rosas (Org.), Paulo Freire: Educação e transformação social (pp. 416-434). Recife: Ed. Universitária da UFPE.
Iturra, R. (2009). O processo educativo: ensino ou aprendizagem? Revista Educação, Sociedade e Culturas, 1. Consultado em http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC1/Iturra.pdf
Moreira, A.F. (2007). Currículos e programas no Brasil (14ª ed.) Campinas: Papirus.
Vieira, S.L., & Freitas, I.M. (2003). Política educacional no Brasil: Introdução histórica. Brasília: Plano.
Contacto: Andréa Rosana Fetzner, Programa de Pós-Graduação em Educação e Departamento de Didática, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, Av. Pasteur, 458 URCA, 22290-240 - Rio de Janeiro, RJ – Brasil/ akrug@uol.com.br
(recebido em setembro de 2014, aceite para publicação em outubro de 2014)
NOTAS
[1] O
livro Pedagogia do Oprimido foi escrito e publicado por Paulo Freire pela
primeira vez fora do Brasil, em 1968. Aqui utilizamos a 2ª Edição da Editora
Afrontamento, Porto, Portugal.
[2] O
livro Educação e Mudança foi publicado em 1979 no Brasil; aqui utilizamos a 10ª
Edição publicada em 1985.
[3] Nota
da autora: No sentido de mirá-la com admiração. Revê-la, agora de
forma crítica. Freire separa as palavras em seus radicais, buscando chamar
a atenção para os sentidos que a constroem.