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O direito das crianças a participar - desafios nas interações do quotidiano

 

Berit Bae

Oslo University College, Oslo, Norway berit.bae@senior.hioa.no  

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Resumo

Neste artigo pretende-se ilustrar o modo como o direito das crianças à participação se evidencia em documentos legais em vigor no domínio da educação da primeira infância na Noruega. Questões relativas às opiniões das crianças, à sua compreensão dos conceitos de democracia e de jogo, que influenciam a forma como esse direito é vivido nas práticas da infância, são tomadas como ponto de partida para discutir possíveis armadilhas.

Com base na análise de um estudo qualitativo em profundidade em dois jardins de infância noruegueses (crianças entre 3-6 anos), são apresentados esses dois exemplos para discutir a participação das crianças, que inclua mais do que escolhas de rotinas individualistas. O artigo remata com um olhar crítico sobre conceptualizações utilizadas nas práticas com crianças, quer em contexto de jardim de infância, quer em contexto de investigação, argumentando-se no sentido de justificar a necessidade de autorreflexão crítica entre os pesquisadores da área.

Palavras-chave: participação infantil; instituições de educação de infância; interacções diárias; brincar; reflexão crítica

 

Abstract

The article starts by illustrating how children’s right to participation comes to the fore in legal documents regulating the field of early childhood education in Norway. Issues regarding the views of children, understanding of democracy and of play, which influence how this right is realised in early childhood practice, are taken as a point of departure to discuss possible pitfalls.

Based on analyses from an in-depth qualitative study in two Norwegian kindergartens (children aged three to six), two examples are presented to argue an understanding of children’s participation which include more than individualistic choice routines. The article is rounded off by taking a critical look at conceptualisations used in early childhood practice and research, arguing that there is a need for critical self- reflection amongst researchers in the field

Key words: children’s participation; preschool institutions; everyday interaction; play; critical reflection.

 

Résumé

Cet article commence par une illustration de la façon dont le droit à la participation des enfants se manifeste dans les textes officiels relatifs à l’éducation de la petite enfance en Norvège. Des questions telles que les points de vue des enfants, la compréhension de la démocratie et du jeu, qui influent sur la manière dont ce droit est mis en oeuvre dans la pratique avec de jeunes enfants, constituent le point de départ d’une discussion sur les pièges possibles.

Basés sur des analyses issues d’une étude qualititive appronfondie, menée dans deux jardins d’enfants norvégiens (enfants âgés de trois à six ans), deux exemples sont présentés pour argumenter une vision de la participation des enfants qui va plus loin que des routines portant sur des choix individuels. Cet article se termine par un regard critique sur les conceptualisations utilisées dans la recherche et la pratique dans le champ de la petite enfance, et la nécessité d’une auto-réflexion critique entre les chercheurs dans ce champ.

Mots-clés: la participation des enfants; établissements préscolaires; interaction quotidienne; joue; réflexion critique

 


INTRODUÇÃO

Neste artigo é abordado um tema que está no topo da agenda educacional na Noruega e nas Regiões Nórdicas, bem como em alguns outros países - os direitos das crianças à participação.

Embora este tema tenha já sido tratado a partir de muitas perspetivas - tanto teóricas como empíricas - neste artigo o foco é mais delimitado, centrando-se, essencialmente, na participação das crianças nas suas interações diárias no jardim de infância [1]. O objetivo do artigo é, assim, refletir sobre as possibilidades dessa participação, bem como discutir os desafios ligados à realização da participação na prática. Para contextualizar a discussão, o artigo apresenta, num primeiro momento, uma referência aos documentos noruegueses e destaca declarações que sublinham a forma como as crianças devem ser respeitadas em relação ao seu direito de se expressar e de tomar parte nos assuntos à sua maneira. Tais declarações podem ser interpretadas como representando possibilidades e eu, brevemente, aponto algumas armadilhas potenciais que se podem correr ao tentar concretizar tal possibilidade na prática quotidiana. Dois exemplos empíricos, a partir de uma abordagem microetnográfica, são apresentados para ilustrar a forma como os direitos das crianças a se expressar podem ser reconhecidos na prática quotidiana. Se, por um lado, a realização de tais direitos pode por em causa  as perspetivas que decorrem dos discursos dominantes sobre relacionamentos e papéis de adultos, por outro, chama à atenção para a necessidade de reflexão crítica sobre alguns conceitos centrais no campo da educação de infância, bem como na prática da pesquisa. Tais questões críticas serão, pois, desenvolvidas no final do artigo.

 


ENQUADRAMENTO

A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança inspirou mudanças que estão enunciadas nos documentos legais de regulação do campo da educação de infância em muitos países, incluindo a Noruega. Para contextualizar a apresentação em termos sociopolíticos, começarei por referir dois documentos legais que regulam as instituições pré-escolares norueguesas: A Lei dos jardins de infância e o Plano-Quadro para o conteúdo e tarefas. Nos dois documentos o direito das crianças em participar é enfatizado.

Inspirada pelo artigo 12 da Convenção das Nações Unidas, a Lei dos Jardins de Infância, secção 3, começa com a seguinte afirmação: "As crianças no jardim-de-infância têm o direito de expressar as suas opiniões sobre o dia-a-dia do jardim-de-infância". Este aspeto é igualmente visível no Plano-Quadro (2006), que contém as diretrizes nacionais para as tarefas e conteúdos de todos os jardins de infância noruegueses. Neste documento, o tema da participação das crianças é enfatizado em termos gerais, sendo ainda apresentado numa secção especial. Nele assinala-se que as crianças se expressam de vários modos e que "os adultos devem ouvir e tentar interpretar a sua linguagem corporal, assim como estar atentos às suas ações, expressões estéticas e, eventualmente, às suas comunicações verbais"(9), bem como "respeitar as suas intenções e domínios da experiência" (9). Em conformidade com isso, “Deve ser garantido o direito das crianças à liberdade de expressão" (9). Formulações como estas apontam no sentido de as crianças serem vistas como sujeitos ou agentes no seu próprio direito, que devem, por isso, ser respeitadas nas suas diversas formas de comunicação.

Tais pontos de vista devem ser vistos no contexto da tradição da educação na primeira infância nos países nórdicos, que se baseia numa abordagem sociopedagógica (Bennett, 2005, 11). Central nesta posição é a ideia de que "o projeto pedagógico está firmemente baseado na dimensão lúdica, com muito movimento, escolha e autonomia da criança”(11). Wagner e Einarsdottir (2006) enfatizam a centralidade do brincar como um dos temas unificadores nos países nórdicos, uma posição que se reflete na introdução do documento do currículo norueguês, o qual enfatiza uma filosofia pedagógica holística: "com o cuidado, o brincar e a aprendizagem no núcleo de atividades "(Plano-Quadro, 3). O significado do brincar está constantemente a ser desenvolvido em relação a outros temas, conteúdos e aspetos[2].

primeira infância serem vistas como parte de uma educação para a democracia (Wagner & Einarsdottir, 2006; Moss, 2007a). Moss afirma que os documentos curriculares nos países nórdicos são diferentes dos documentos britânicos. Documentando com exemplos da Suécia, Noruega e Islândia, Moss conclui: "Assim, enquanto que os currículos nórdicos reconhecem explicitamente a democracia como um valor, os currículos Ingleses não fazem "(2007a, p. 10). Este ponto torna-se evidente no Plano-Quadro norueguês através de afirmações como: "O plano enfatiza a importância das atitudes dos adultos, o seu conhecimento e habilidade para se relacionarem com e compreenderem as crianças, para que possam educar as crianças no sentido de estas participarem ativamente numa sociedade democrática "(Plano-Quadro 3).

Os documentos noruegueses preveem, então, jardins de infância como lugares onde as crianças devem ser respeitadas como sujeitos, por direito próprio, sendo-lhes atribuído o direito à liberdade de expressão. A sua experiência pré-escolar deve incluir relações democráticas, permitindo-lhes ao mesmo tempo oportunidades ricas para brincar. Estes são valores que os profissionais e funcionários nas instituições de primeira infância na Noruega são obrigados a entender.

Neste contexto, é interessante notar que a pesquisa empírica das instituições nórdicas de educação infantil mostra que a qualidade das relações e interações com crianças varia de acordo com as instituições e com os educadores (Sheridan & Pramling Samuelsson, 2001; Johansson, 2003, 2004; Bae 2004; Emilsson & Folkesson, 2006). Alguns relacionamentos são caracterizados por interações sensíveis e respeitosas, enquanto que outros são mais distantes e controladores. Tais resultados levam a acreditar que a realização dos valores acima mencionados será distribuída de forma desigual na prática quotidiana.

Johansson (2003) analisou as opiniões das crianças em diversas instituições e identificou três diferentes agrupamentos. As perspetivas dos adultos foram classificadas a partir das seguintes dimensões:

(a) A criança é um sujeito;

(b) Os adultos sabem mais;

(c) A criança é vista como irracional (Johansson, 2003)

Na sequência destes resultados, Johansson (2004) verificou que os pontos de vista dos adultos acerca das crianças resultavam na atribuição de diferentes papéis para as crianças no seu processo de aprendizagem. Estes variavam em função do papel do adulto: desde o adulto que tem confiança na capacidade da criança, ao adulto que usa a punição e a recompensa. Essas descobertas indicam que os pontos de vista dos adultos são importantes e influenciam as possibilidades que as crianças têm para participar e contribuir a seu modo para as interações quotidianas.

Variações qualitativas sobre os pontos de vista das crianças e práticas educativas são naturais, uma vez que as imagens dos papéis de crianças e adultos estão em transição. A partir de diversas fontes (por exemplo, James, Prout, & Jenks,1998; Sommer, 2003), argumenta-se que passar a considerar as crianças como sujeitos ou agentes representa uma mudança de paradigma, ultrapassando ideias nas quais as crianças são tratadas como objetos a serem alterados e formados de acordo com metas predefinidas. Essas ideias estão de acordo com as discussões dos pesquisadores acerca das implicações da Convenção das Nações Unidas (Schulz Jørgensen 2000; Woodhead 2005; Smith 2008). Woodhead (2005) argumenta que os direitos de participação das crianças (especialmente os artigos 12, 13 e 14 da Convenção das Nações Unidas) em situações práticas desafia formas tradicionais de pensar as relações adulto-criança e exige novas expectativas sobre o papel dos adultos que cuidam de crianças. Woodhead conclui que a Convenção das Nações Unidas não só altera o estatuto das crianças, mas assume que "respeitar os direitos das crianças muda a maneira como pensamos sobre nós mesmos "(Woodhead, 2005, p. 95)

O que é afirmado em documentos oficiais não é, no entanto, garantia de que será assegurado nem o espaço às crianças para participar nos seus próprios termos, nem o respeito pelas suas várias expressões.

Estas declarações podem representar possibilidades. A investigação é necessária para clarificar os modos como estas possibilidades podem ser realizadas na prática quotidiana. Vários pesquisadores analisaram a relação entre democracia e vários aspetos da educação infantil (Dahlberg & Moss, 2005; Rinaldi, 2005; 2007a Moss, 2007b) e várias formas documentadas de tornar a democracia possível na prática pré-escolar (Clark 2005; Rinaldi 2005; Åberg & Lenz Taguchi 2006). Em comparação com estas análises, a minha abordagem não contempla a participação e a democracia num sentido mais amplo, ou um nível institucional ou comunidade. O meu ponto de partida é o de que todos os dias as interações e comunicações com os adultos influenciam a realização dos direitos de participação das crianças. Neste artigo - construído a partir das formulações do Plano-Quadro Norueguês - a participação é delineada considerando como são reconhecidos os modos de comunicação das crianças e como é que lhes é assegurada a liberdade de expressão nos processos espontâneos do quotidiano.

Além de explorar os processos ao nível micro das práticas de comunicação, parece igualmente importante refletir sobre conceitos relevantes que possam melhorar ou prejudicar a participação e as expressões das crianças. A intenção deste artigo é, portanto, focalizar a atenção tanto nas qualidades das interações quotidianas, como nas reflexões acerca das conceptualizações que podem influenciar a participação das crianças. Duas questões de investigação serão abordadas:

(1) Quais os aspetos importantes das interações diárias em que as crianças tomam parte à sua maneira e se expressam de várias formas, incluindo formas lúdicas?

(2) Que noções / conceitos exigem reflexão crítica, se o direito das crianças a fazer parte e a se expressarem tiver de ser reforçado nas interações quotidianas nos jardins de infância?

Como as questões dos direitos das crianças são tão relevantes na agenda educacional da primeira infância, tanto em termos de declarações curriculares, como em termos de pressão sobre a implementação nos processos [3], os profissionais da área podem sentir-se compelidos a começar o trabalho prático sem uma reflexão prévia e crítica sobre conceitos relevantes. Numa altura em que existem diversificadas imagens de crianças e de investigação, é razoável acreditar que, quer profissionais, quer pesquisadores, irão contribuir para a realização de algumas possibilidades, bem como enfrentar potenciais armadilhas. Quero, pois, brevemente, sublinhar algumas possíveis armadilhas na consecução desta agenda.

 


POSSÍVEIS ARMADILHAS

A primeira noção para a qual chamarei à atenção é o que se entende por perspetivas das crianças. Sobre este ponto, eu sigo outros pesquisadores que discutiram a necessidade de ver as crianças - e adultos - tanto como "seres" como "devires" (Lee, 2001; Kjørholt, 2008a). Os seres humanos vivem no aqui e agora, mas, ao mesmo tempo, eles têm intenções projetadas para o futuro, tentando perceber novas possibilidades. Se os direitos da criança para participar à sua medida são para serem realizados na prática, é essencial que eles encontrem educadores/funcionários sensíveis: educadores que reconheçam as suas competências e vontade de desenvolver e aprender e que, ao mesmo tempo, sejam abertos a aspetos de vulnerabilidade e dependência.

Na ânsia de implementar novas ideias, uma armadilha pode ser colocar muita ênfase em perspetivas que consideram as crianças como autónomas, competentes e seres consistentes, subestimando dimensões mais dependentes e vulneráveis. Os problemas associados a uma tal posição foram formulados por vários pesquisadores (Kjørholt, 2005; Eide & Winger, 2006; Seland, 2006; Kjørholt, 2008a), apontando para práticas educativas que estimulam maneiras de ser individualistas, interpretando assim a participação das crianças principalmente como autodeterminação e de escolha individual. Eu concordo com Moss (2007a), que argumenta que os conceitos de escolha podem ter diferentes significados; por exemplo, quando usados em conexão com os processos de tomada de decisão coletiva, como distinta do uso “neoliberal de ‘escolha’, como a tomada de decisão de consumidores individuais” (9). O que pode não estar totalmente esclarecido quando domina a conceção de escolha do consumidor-individualista é que é importante para os seres humanos experienciar a conexão emocional junto com o prazer de colaborar e compartilhar.

Outro problema associado pode basear-se em perspetivas irrefletidas sobre a democracia.

A partir de fontes que têm analisado o que a democracia pode significar no contexto da educação infantil (Dahlberg & Moss, 2005; Rinaldi, 2005; Moss 2007a, 2007b), ou explorado questões relacionadas com educação e democracia num sentido mais geral (Biesta, 2006, 2007), é óbvio que a democracia pode ser concebida de acordo com diferentes perspetivas. Isto pode ser entendido, principalmente com referência a aspetos formais, como escolha individual, eleições, representação, seguindo a regra da maioria etc., ou a ênfase pode estar no conceito de democracia como um fenómeno processual, que é criado pelos participantes, como algo vivido (Rinaldi, 2005). Quando o foco é sobre as crianças pequenas e as suas interacções com a equipa, "a compreensão da democracia como esporádica, como algo que só acontece de vez em quando e em situações muito particulares” (Biesta, 2007, 25), pode ser frutífera. Talvez um termo como "momentos democráticos" possa capturar o que acontece quando a equipa em educação de infância deixa espaço para a participação das crianças pequenas e liberdade de expressão,

Eu vejo uma possível armadilha se as pessoas no campo da educação de infância automaticamente enfatizarem os aspetos formais da vida democrática, como os procedimentos da eleição individual, a participação em reuniões, ou seguindo regras e o princípio de que a maioria decide. A tradução de tais ‘formalidades' nos contextos de educação da primeira infância levam a que nos focalizemos em técnicas de escolha individual, assembleias infantis ou reuniões – tudo realizado em ambientes controlados por regras, com poucas possibilidades para a diferença e diversidade. Uma ilustração prática disto poderia ser quando as crianças pressionam um botão num computador para decidir onde vão jogar na próxima hora. Isso conta como uma escolha individual que não pode ser alterada, com o fundamento de que as crianças devem aprender a assumir as consequências das suas próprias ações. Bjarnadottir (2004) descreve outros exemplos nos quais refere que as crianças participam em rotinas desenhando num papel colorido para decidir em qual espaço terão de estar, independentemente de qualquer desejo que possam ter de jogar com amigos em algum outro espaço. O que é subestimado, sempre que se ficar refém de tais métodos, é que a vida comunitária é construída através de experiências quotidianas - em momentos de democracia – nos quais diferentes intenções são atendidas com respeito, e onde há espaço para a mudança de cada um.

Uma última armadilha, ligada ao que é dito acima, é que o papel da brincadeira pode ser subestimado, ou separado da questão da participação das crianças. Com uma conceção limitada da vida em comunidade e enfatizando rotinas controladas por regras e escolhas individuais, as interações lúdicas e a brincadeira podem passar para segundo plano. Quando isso acontece, pode ser interpretado como uma violação tanto do artigo 13 como do artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança. O artigo 13 estabelece que:

A criança terá o direito à liberdade de expressão; este direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem consideração de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, sob a forma de arte, ou através de qualquer outro meio de escolha da criança.

Com referência ao artigo 13, eu interpreto o brincar como um meio "de escolha da criança” (Bae, 2006). Brincar é um modo através do qual as crianças expressam livremente as suas intenções e experiências.

Ao serem entrevistadas sobre o que gostam de fazer no jardim de infância, o brincar é sempre a maior prioridade das crianças (Søbstad 2004). Quando dão a sua opinião a respeito de onde eles têm mais influência na vida diária, o brincar é visto como a arena mais influente (Sheridan Pramling e Samuelsson, 2001). Jans (2004) argumenta que o brincar oferece amplo espaço para a agência ativa e discute o seu valor no contexto da cidadania das crianças.

Além disso, Kjørholt (2008b) considera que o artigo 31 da Convenção das Nações Unidas, que diz respeito ao direito das crianças ao espaço para brincar, tanto em instituições de educação infantil como em outros lugares, assume particular importância no que diz respeito aos direitos de participação das crianças. Esta ideia vai ao encontro do que é defendido por Alderson (2008), que inclui o artigo 31, em conjunto com os artigos 12 e 13, como o mais importante em matéria de direitos de participação das crianças. Assim, estes pesquisadores apoiam a ideia de que o brincar deve ser incluído quando se pretendem concretizar os direitos da criança à participação em contextos de educação de infância.

 


INTERAÇÕES QUOTIDIANAS COMO OPORTUNIDADE PARA A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS

Perspetivas teóricas e metodológicas


Apresento, agora, a pesquisa que tem incidido sobre aspetos qualitativos acerca da forma como a prática quotidiana pode fazer a diferença para a participação das crianças. Alguns estudos baseados em entrevistas com crianças abordam as perspetivas das crianças sobre a participação (Sheridan & Pramling Samuelsson 2001; Formosinho & Araújo 2004; Eide & Winger 2005). Outros investigam as rotinas diárias de participação e ligam os procedimentos às tendências neoliberais (Seland, 2006; Kjørholt, 2008a). Outros projetos baseiam-se na observação das interações quotidianas em instituições pré-escolares, utilizando a análise de aspetos comunicacionais que predispõem para possibilidades de participação das crianças (Bae, 2004, 2005, 2007; Emilson & Folkesson 2006; Emilson 2008).

Inspirada pela abordagem fenomenológica, interessei-me por tentar capturar qualidades experienciais de diálogos quotidianos entre crianças e os seus educadores (Bae 2004). As questões de investigação concentraram-se em compreender como é que aspetos qualitativos das interações criam premissas para o reconhecimento das crianças como sujeitos de direito próprio, demostrando aceitação dos seus mundos experienciais. Nesta pesquisa, escolhi a conceptualização de Schibbyes (1993, 2002), de reconhecimento mútuo, como uma ferramenta teórica orientadora.

Essa linha de pensamento foi frutífera porque enfatiza a ideia de que os parceiros em interação são de igual valor, e isso canaliza a atenção para a forma como eles criam condições mútuas para as ações de cada um nos processos relacionais. Deste modo, representa uma abordagem alternativa para pesquisar as relações entre adultos e crianças que são descritas de formas unilaterais, objetivando as crianças e assumindo as perspetivas dos adultos como garantidas.

Um aspeto central neste enquadramento teórico é o de que a autorreflexão, incluindo o poder ver-se a partir da perspetiva do outro, é necessária na mediação do reconhecimento mútuo.

Um estudo qualitativo em profundidade, que se focalizou nos processos de relacionamento educador-criança, foi planeado no sentido de explorar a forma como o reconhecimento mútuo emerge na relação entre educadores e crianças em instituições de educação de infância (Bae, 2004). A recolha de dados foi baseada na observação participante em dois jardins de infância em Oslo (Noruega), onde dois educadores que trabalham com crianças de 3-6 foram filmados pela investigadora durante quase um ano. Interações diárias entre educadores e 14 crianças foram filmadas em três situações diferentes: o horário das refeições, em tempo de círculo e no período de atividade livre.

A metodologia da pesquisa envolveu proximidade com a vida quotidiana das crianças, no sentido de me possibilitar, como pesquisadora, passar muito tempo no seu quotidiano, entre agosto e maio do ano seguinte. As crianças não foram entrevistadas, mas interagiram com a pesquisadora através de conversas espontâneas, nas quais, entre outros aspetos, as minhas ações e filmagens foram comentadas. Além disso, muitas vezes participei nas suas refeições, algumas vezes nas suas brincadeiras e, ocasionalmente, ajudei quando havia falta de pessoal. Eu e os educadores colaborámos em todas as fases da investigação, incluindo no planeamento, no trabalho de campo e em períodos de análise e escrita.

Analisámos e discutimos o material filmado, junto com conversas informais e entrevistas a respeito das suas intenções com várias atividades. Na última fase da escrita, os educadores leram a primeira versão do texto e comentaram, o que, por sua vez, influenciou a escrita final. (Para uma discussão mais aprofundada dos desafios de tal colaboração entre educadores e pesquisadores, consulte Bae, 2005.)

O design e a metodologia do estudo contribuíram para uma rica fonte de material filmado, que descreve as interações em vários contextos, em diferentes momentos e com diferentes crianças. A partir deste material inicial, sequências curtas foram transcritas usando o método de análise de Løvlie / Schibbyes (1982, 2002) como uma ferramenta para delinear sequências. Um total de 730 interações curtas foram transcritas e analisadas. As interações transcritas foram sendo usadas como uma base para diferentes tipos de análises (Bae 2005, 2007, 2009 b). Nesta apresentação, vou focar brevemente as principais diferenças entre os modelos e delinear o foco para modelos amplos de interação.

 


MODELOS AMPLOS E ESTREITOS COMO PREMISSAS PARA A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS

Na tentativa de capturar o fluxo processional e de reciprocidade na interação, dois modelos contrastantes, descritos pelas metáforas de modelo interacional amplo e estreito, foram construídos como ferramentas analíticas (Bae, 2004, 2005, 2007). O modelo amplo é interpretado para validar as experiências das crianças e reforçar a sua vitalidade, enquanto que o modelo estreito parece contrair as possibilidades de as crianças terem o seu mundo vivencial validado. Nos modelos estreitos há muito controlo por parte da educadora, seja por meio de perguntas fechadas, corrigindo ou enfatizando regras. Esses aspetos criam um espaço relacional, onde a possibilidade de as crianças tomarem a iniciativa, produzirem pensamentos próprios ou compartilharem sentimentos, é interpretado como estreita. Em contraste, nos modelos amplos interacionais, as crianças têm mais espaço para apresentarem os seus pensamentos, sentimentos e ações; ao mesmo tempo que a educadora também participa como sujeito ativo, partilhando conhecimentos, brincadeiras ou outro aspeto qualquer. Nesta apresentação, focarei o que acontece em trocas de tipo amplo, conforme ilustrado abaixo.

Dois exemplos

Deixem-me partilhar um par de exemplos, os quais retomam os aspetos acima mencionados para olhar mais de perto a vida em pré-escolas. Os exemplos são usados nas ilustrações desta pesquisa, não como apontamentos da prática, mas como documentação empírica que foi emergindo através de vários passos analíticos (Bae, 2005, 2008), destinando-se a esclarecer os modos como as crianças e os adultos tomam parte e criam significados nos processos de comunicação. O primeiro exemplo dá conta de um menino que toma a iniciativa de ajudar o seu amigo numa situação stressante.

Exemplo 1: um menino, pertencente a um grupo minoritário tentando ajudar outro

O contexto é o de atividade livre. A educadora e um menino pertencente a um grupo minoritário estão a conversar, tendo dificuldade para se entenderem. Ambos estão exaltados e irritados porque não conseguem compreender-se. Em seguida, outro rapaz, pertencente ao mesmo grupo minoritário, aproxima-se e começa a dizer alguma coisa. Como resposta à sua iniciativa a educadora vira-se para ele com um gesto de rejeição e diz em uma voz irritada: 'Não perturbes! Não vês que estou a falar com ele!'

Com esta resposta o menino retira-se apressadamente, com um olhar envergonhado no rosto.

A educadora, no entanto, percebe isso, recompõe-se e, com um gesto convidativo, pede-lhe para dizer o que ele tinha em mente. Esta criança queria ajudar o seu amigo e a educadora com o seu problema de comunicação! Ele falava tanto norueguês como a língua minoritária e somente queria ajudar na interpretação.

Quando é convidado a entrar de novo, ele começa a explicar aa educadora o que seu amigo estava a tentar comunicar. A educadora ouviu a contribuição do “intérprete" e ao mesmo tempo o menino com menos conhecimento de norueguês entra na conversa, falando uma mistura de norueguês e a sua língua minoritária. Eles continuaram a falar numa atmosfera amigável e bem-humorada; os três aprenderam palavras novas de cada um.

Interpretada em termos teóricos, parece poder dizer-se que a educadora pratica a autorreflexão, no sentido em que ela parece perceber como a sua comunicação abrupta é vivida a partir da perspetiva da criança. Em vez de deixar a interação acabar com a sua resposta de rejeição e parar a iniciativa da criança com um gesto repentino definindo as suas ações de uma forma negativa, ela é capaz de mudar a sua própria perspetiva a partir da perspetiva da criança.

Ao mostrar arrependimento, quando a criança se retira rapidamente, a educadora assume a responsabilidade pelo que aconteceu entre eles. A capacidade de mudança da sua perspetiva inicial para considerar o ponto de vista da criança cria novas condições relacionais para que o menino mais velho possa ajudar o seu amigo, e para os dois poderem participar nos seus próprios termos.

O segundo exemplo dá conta do reconhecimento da brincadeira e das iniciativas lúdicas. A pesquisa mostra que as crianças incluem o brincar e as iniciativas lúdicas numa ampla gama de situações e contextos (Bae, 1996, 2004; Markstrom & Hallden 2008). Eles encontram possibilidades de jogar às vezes em locais que não tinham sido definidos inicialmente enquanto espaços de brincadeira. Em tais casos, as suas formas de se expressarem podem contrariar as regras que a equipa decidiu, ou as normas que a equipa associa a determinados contextos. O modelo amplo de interações, que no meu estudo é observado tanto na hora das refeições como noutros contextos, inclui uma abertura e aceitação das iniciativas lúdicas infantis em diferentes tipos de situações.

Exemplo 2: interação lúdica na hora das refeições

A menina de quatro anos de idade, que é muito tímida e não usa muitas palavras ao comunicar com os outros, começa na hora das refeições a jogar com várias coisas na mesa. A educadora, que tem problemas em comunicar verbalmente com ela noutras situações, congratula-se com as suas expressões lúdicas e responde de forma afirmativa, como se demonstra abaixo.

Num exemplo, a menina começa a brincar com um pedaço de casca de laranja, fingindo que é uma tartaruga, a qual se move entre copos e talheres sobre a mesa. Ela empurra a "tartaruga" em direção à mão da educadora e diz com uma voz alegre e com um sorriso no rosto: "Ha ha, ela está a morder-te!" A educadora vira a sua atenção para a menina, que responde espontaneamente e diz com uma voz fina brincalhona "Auuu – ela mordeu-me!" A menina olha para a educadora com um olhar satisfeito no rosto, e a educadora, mais uma vez, diz "Ahh!" em tom de voz brincalhão. A educadora e a menina mantêm o seu foco comum sobre a "tartaruga", e repetem o mesmo diálogo brincalhão várias vezes, até que outra criança interrompe, exigindo ajuda da educadora.

Quando analisamos este episódio teoricamente, ele pode ser interpretado para mediar o reconhecimento mútuo. Apesar de todas as diferenças entre elas, ambas participam como sujeitos que compartilham um foco comum e experiências lúdicas no horário das refeições. A educadora é capaz de mudar a posição da menina, reconhecendo à criança iniciativa lúdica, e confirmar o seu modo de comunicação. Assim, ela cria espaço para a criança poder influenciar o que acontece no aqui e agora.

Outra interpretação do exemplo pode concentrar-se no modo como a criança exercita a sua liberdade de expressão. Ela escolhe o jogo como um meio de entrar em contacto com a educadora tornando-se vista e ouvida. A sua iniciativa lúdica pode ser vista como um desejo de tomar parte à sua maneira e de experimentar a ligação com outros à volta da mesa.

Uma vez que a educadora é sensível em relação ao seu pretenso modo de comunicação não-verbal, e considera o ponto de vista da criança, um espaço relacional é criado no qual ela pode expressar a sua "voz". Como isso aconteceu, os intercâmbios lúdicos na hora da refeição acabaram por ser o início de um longo processo no qual a criança, gradualmente, também expressou mais de si mesma através de formas verbais e outros de comunicação (Bae, 2004).

Apresentar e discutir este e outros exemplos semelhantes da refeição com a equipa em jardim de infância, geralmente, dá origem a discussões acaloradas. Alguns argumentam fortemente contra o facto de as crianças serem autorizadas a brincar na hora das refeições com comentários como:

"A hora das refeições é para comer, eles podem brincar depois! Você tem que separar os dois e ensinar à criança normas de comportamento adequado - boas maneiras - à mesa "

Não existe uma solução final ou resposta certa para tais argumentos, mas as discussões elevam a consciencialização dos funcionários acerca do seu próprio papel nas interações do quotidiano.

O que eu tentei ilustrar através destes exemplos é que o reforço da oportunidade de as crianças participarem como sujeitos inclui muito mais do que autodeterminação individual e procedimentos formais ligada à escolha. Relações democráticas também envolvem aceitar que, às vezes, as pessoas não compreendem, e querer ajudar os amigos e atos de solidariedade são parte da vida em comunidade. Se contextos e rotinas dentro das instituições de educação infantil são dominados por regras rígidas e distinções nítidas, o espaço para expressões lúdicas e a aceitação de diferentes modos de comunicação será escassa, se não ausente.

Quando se sintetizam as interações nas quais as crianças podem participar e ter liberdade de expressão, são especialmente importantes as seguintes contribuições da educadora:

(a) Acompanhar as iniciativas da criança,

(b) demonstrar capacidade de resposta emocional e expressividade,

(c) ter uma atitude de brincadeira, e

(d) a capacidade de mudar de perspetiva e considerar o ponto de vista da criança.

Estas qualidades estão de acordo com as conclusões de outros estudos empíricos sobre as interações no quotidiano, entre eles uma pesquisa sueca que se focalizou na compreensão do controlo dos educadores e na participação das crianças (Emilson & Folkesson 2006; Emilson 2008).

 


A REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE ALGUNS CONCEITOS CENTRAIS

Assumindo como premissa que os princípios da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança são radicais e desafiam maneiras tradicionais de pensar acerca da relação adulto-criança, há uma necessidade de ter um olhar crítico sobre algumas conceptualizações centrais. Em seguida irei defender que as conceptualizações influenciam a forma como as equipas, na primeira infância, compreendem as relações e interações com as crianças. De acordo com outras discussões sobre teoria e prática na primeira infância, considero que é necessário desconstruir bem como reconstruir o discurso dominante: “'Na educação infantil precisamos, agora, de ir além de desconstrução, necessitamos caminhar para a reconstrução" (Dunne, 2006, 13).

Se às crianças são permitidos espaços de participação e de expressão, tal necessita de um olhar crítico sobre discursos que são baseados numa compreensão unilateral de relacionamentos, considerando as perspetivas dos adultos como garantidas. Em contraste a tais discursos unilaterais, as conceptualizações que chamam a atenção para a intersubjetividade e processos recíprocos nos relacionamentos têm o potencial de assegurar maior equidade para as crianças, e também de tornar os adultos mais conscientes acerca da forma como são afetados pelas iniciativas e vozes das crianças (Rhedding-Jones, Bae, & Winger, 2008). Tal como ilustrado na interpretação dos exemplos, no sentido de considerar as crianças como sujeitos, é necessário que os adultos considerem a forma como eles são influenciados pelo que acontece no aqui e agora, incluindo ser capaz de ver quando a sua comunicação pode funcionar de forma de opressão para o outro.

Os exemplos mostram, também, que as crianças são seres humanos dependentes de respostas de outros ao seu redor para se poderem expressar plenamente. Ao serem autorreflexivos a respeito do seu próprio papel e de mudarem as suas perspetivas, educadores e outros funcionários podem assumir a responsabilidade pelos seus poderes de definição (Bae, 1996). Com base na minha observação, pesquisa e análise de trocas quotidianas de perspetivas do reconhecimento mútuo e reciprocidade, tais conceitos apresentam-nos as crianças como seres humanos com intenções, que são competentes na tomada de iniciativas e influência da sua vida diária (Bae, 2004, 2009b).

Muitos pesquisadores têm abordado o tema do poder na educação de infância (Dahlberg & Moss 2005; MacNaughton 2005; Lenz Taguchi 2007) e mostrado a necessidade de desconstruir teorias e práticas para tornar visível o trabalho subtil do poder em acordos e normas institucionais. Junto com essas considerações, pode também ser útil ter um olhar crítico sobre conceitos como estratégias de controlo, ordem e estratégias, que têm tido grande importância nos discursos dominantes acerca das relações criança-adultos.

Questões críticas que daqui podem surgir:

(1) Será que essas perspetivas emanam de pontos de vista que consideram as crianças como seres primitivos associais, cujas ações são caóticas e perturbadoras, e que necessitam controlo, a fim de se transformarem em seres humanos?

(2) E esses conceitos medeiam uma imagem de sociedade onde a lei e a ordem e as relações hierárquicas são as normas mais importantes?

Como afirmei acima, os direitos das crianças para participar também implicam ter em consideração a sua vontade de mostrar solidariedade. Conceitos que chamam a atenção para aspetos amigáveis e confiantes das relações podem lançar uma nova luz sobre a contribuição das crianças para momentos democráticos na educação de infância.

Tal como já referimos anteriormente, a brincadeira é central na educação de infância. Isso permite que haja espaço para a liberdade de expressão das crianças e para estas participarem como agentes ativos. Em vista disso, discursos dominantes sobre a brincadeira necessitam de reflexão crítica.

Os pesquisadores têm alertado para a tendência de idealizar a brincadeira (Sutton Smith & Byrne, 1984; Ailwood 2003). Tais discursos podem desviar a atenção das dinâmicas e dos mecanismos de poder excluindo outros – o que a pesquisa mostra quando as crianças brincam (Løfdahl & Hagglund, 2006a, 2006b). Além de “idealizar” o fenómeno, muita teoria e prática em matéria do brincar tem sido associada e categorizada de acordo com as orientações da psicologia do desenvolvimento, considerando-a, principalmente, como um instrumento para certos resultados desenvolvimentais pré-determinados. Isso pode levar a que os profissionais tentem regular e controlar o conteúdo e as relações do brincar das crianças.

Num estudo intitulado "The well-regulated freedom", Tullgren (2004) analisa a forma como a equipa numa instituição sueca de educação de infância interfere e tenta controlar os processos de brincadeira. Regular o jogo das crianças para fins instrumentais pode ser interpretado como ameaça ao direito das crianças à liberdade de expressão através da brincadeira. Tais pontos de vista e práticas também contrastam com o que as crianças respondem quando lhes é perguntado porque é que brincam. As crianças referem que brincam pelo prazer de brincar (Søbstad, 2005).

Perspetivas alternativas sobre o brincar, que contestam discursos dominantes, são baseadas em ideias dos estudos culturais ou estéticos (Guss, 2005a, 2005b) e em fontes que enfatizam o lúdico como uma capacidade humana para se deslocar entre modos e níveis de comunicação (Mauritzen & Säljö 2004). Tais conceptualizações oferecem um potencial para a descoberta quer das competências das crianças em relação à comunicação, quer das suas habilidades para mudar as perspetivas. E, como Edmiston (2008) argumenta, conceptualizar a brincadeira como um diálogo multifacetado, no qual se expressa a resistência e diferentes vozes no sentido Bakhtineano, é outra alternativa proveitosa (Edmiston, 2008). Estas abordagens chamam à atenção para ver a brincadeira como uma prática na qual as crianças exercitam a liberdade de expressão e de pensamento, e como uma forma de resistência às normas.

Tais fios desafiam a hegemonia do 'desenvolvimentismo' (Dahlberg, Moss, & Pence, 1999; Fleer, 2005) e podem oferecer aos profissionais da primeira infância meios teóricos bem fundamentados, para que estes possam descobrir a competência e criatividade que se podem encontrar nas interações de brincadeiras. Uma questão interessante a seguir nesta linha de pensamento é a seguinte: o que podem os adultos aprender a partir da interação e da brincadeira com as crianças? Na minha opinião, explorar essa questão pode levar a mudanças nos papéis adultos, no sentido de criarem mais espaço para a participação das crianças.

 


CONCLUSÃO E OLHANDO PARA FRENTE

Resumindo: de acordo com o que é enfatizado em diretrizes internacionais e nacionais, as crianças têm o direito de experimentar o respeito pelas suas intenções e expressões em atividades diárias, seja através de ações corporais, do cantar, desenhar ou o jogar. O seu direito de participar é ameaçado se for reduzido a rotinas formais que enfatizam escolhas individuais. Tais abordagens reducionistas podem, por outro lado, satisfazer a necessidade dos profissionais mostrarem ao mundo exterior que trabalham na implementação da participação das crianças.

No entanto, quando se trata de apoiar as crianças a expressarem os seus pontos de vista e, desta forma, assegurar o seu direito à liberdade de expressão na prática, tais métodos não serão suficientes.

Muito pelo contrário: eles podem dar às crianças e a outras pessoas uma falsa visão do que são processos democráticos na vida quotidiana.

Parafraseando Woodhead (2005) quando refere que os artigos da Convenção das Nações Unidas mudam o papel dos adultos nas relações com as crianças, sugiro que fazer pesquisa de formas que sejam propícias à realização dos direitos da criança, exige que os pesquisadores repensem o seu papel em relação ao campo prático. Da minha experiência de pesquisa em colaboraração com os educadores (Bae, 2005, 2008, 2009a), incluindo longos períodos de trabalho de campo em diferentes instituições, considero que o pesquisador deve assumir uma relação de proximidade com as crianças nas suas experiências quotidianas como um pré-requisito fundamental. Participação em conjunto com várias abordagens metodológicas vem lançar uma nova luz sobre as crianças como seres humanos e as suas diversas formas de relacionamento nos seus contextos. Contestando os métodos tradicionais, alguns pesquisadores estão a explorar formas de incluir as crianças em processos de investigação (Christensen & James, 2008). Alguns têm explorado as perspetivas das crianças através de entrevistas (Eide & Winger, 2005), enquanto outros têm seguido iniciativas das crianças sobre o que elas consideram importante no seu contexto (Clark, 2005). Essas abordagens parecem promissoras em revelar pontos de vista das crianças sobre a sua vida em instituições de educação de infãncia.

Se os pesquisadores, irrefletidamente, construírem o seu trabalho a partir de um paradigma dedutivo de relação teoria-prática (Lenz Taguchi, 2007; Bae, 2008, 2009a), eles facilmente cairão na armadilha de desenvolver relações top-down. A partir dessas posições, facilmente assumirão as suas perspetivas como válidas e apresentarão programas como "soluções" para os problemas de participação - abordagens que contribuam para o silenciamento das vozes dos praticantes em vez de os capacitar para a mudança dos seus papéis.

Ao tentar criar equidade nas relações de pesquisa, o pesquisador assume vários desafios e problemas éticos (Bae, 2005). Tal como eu experienciei com a utilização da vídeo-filmagem, como recurso metodológico, trata-se do risco de os participantes se sentiram objetivados. Por isso, duas questões são importantes ao desenvolver pesquisa que envolve proximidade com os educadores. Por um lado, saber como o pesquisador pode assumir a responsabilidade pela preparação de educadores para a experiência de serem filmados e, por outro, que possíveis sentimentos podem surgir quando se discute o seu próprio comportamento, a partir do que é mostrado no vídeo.

Outro desafio é como escrever sobre as interações para que os educadores se sintam reconhecidos e respeitados. Estes desafios estão relacionados com os sentimentos que podem emergir pelo facto de os educadores serem ‘descritos’(Tobin & Davidson, 1990, 278) e exige autorreflexões críticas da parte do pesquisador (Bae, 2005).

Um olhar crítico sobre conceitos de pesquisa tradicional poderá, também, ser necessário. Alguns deles carregam conotações bélicas (por exemplo matéria de investigação, estratégias de investigação, confronto teórico), enquanto outras enfatizam ordem e controlo (por exemplo, variáveis de controle).

A autorreflexão sobre a linguagem que os pesquisadores usam pode trazer à tona o facto de que eles são portadores de conceções competitivas e hostis de outras pessoas e poderiam ter uma visão de mundo que valoriza principalmente a lei e a ordem. Tais linguagens e visões de mundo podem contaminar as perspetivas dos pesquisadores e tornar difícil encarar com seriedade a vitalidade da brincadeira – tal como outras designações.

Olhando para o futuro, eu acho que é importante que os investigadores continuem a desenvolver abordagens que incluam as crianças e os profissionais no terreno [4]. A minha experiência com projetos colaborativos em jardim de infância permite-me afirmar que os mesmos desafiam os pesquisadores para mobilizarem os seus recursos criativos e lúdicos, juntamente com atitudes de humildade e de modéstia. Tanto na prática de pesquisa como em textos, deve ser concedido espaço para a partilha de linhas de pensamento preliminares, imaginando diferentes formas de compreender o fenómeno, e a procura de novas metáforas e a inclusão de ideias em colaboração com os outros.

Tais práticas de investigação podem ser o oposto do que os políticos e os meios de comunicação querem em termos de factos, a investigação baseada em evidências e conclusões definitivas. Em vez disso, eles envolvem entendimentos e significados contestados nas relações recheadas de vitalidade e diferenças amigáveis - não muito diferente do que as crianças fazem quando colaboram em brincadeiras e expressam o seu direito à liberdade de expressão.

 

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Contacto: Berit Bae, Department of Teacher Education and International Studies, Oslo University College, Oslo and Akershus University College of Applied Sciences, P.O. Box 4 St. Olavs plass, N-0130 OSLO, Norway /berit.bae@senior.hioa.no

 

Texto original publicado na revista European Early Childhood Education Research Journal. A tradução para portugês, realizada por Natália Fernandes e Catarina Tomás, foi autorizada pela Comissão Editorial da Revista e pela autora

 

(recebido em fevereiro de 2015, aceite para publicação em março de 2015)


NOTAS

 

[1]As instituições de primeira infância para crianças abaixo da escolaridade obrigatória na Noruega são chamadas barnehager que, traduzido diretamente significa, 'jardim das crianças’, ou jardim de infância. O termo barnehage abrange muitos arranjos organizacionais diferentes para crianças pequenas entre um e cinco anos de idade. No momento, cerca de um terço das crianças têm entre um e três anos de idade. O denominador comum para todos os jardins-de-infância é que ele deve ser conduzido por um profissional educador com um diploma de licenciatura em educação de infância.


[2] No documento, que contém 34 páginas, uma contagem de palavras mostra que a palavra brincar é mencionada 89 vezes.


[3] Após a revisão do Plano-Quadro em 2006, o governo norueguês lançou um plano de implementação de quatro anos, que deve ser seguido nos níveis regionais e locais. A questão da participação das crianças é uma das áreas prioritárias nesta implementação.


[4] No nº 2 da edição da revista EECERA (2008), vários projetos de pesquisa envolvendo a colaboração com os profissionais são descritos.