EDITORIAL

Editorial

 

Catarina Tomás, Natália Fernandes
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa

 

A infância sofreu, ao longo do último século, um conjunto de transformações assinaláveis no que diz respeito aos modos como tem vindo a ser conceptualizada, aos espaços que tem vindo a (não) ocupar e aos tempos em que tem vindo a ser compartimentada.

Podemos afirmar que a infância, tal como hoje a compreendemos, sendo uma estrutura geracional universal, presente em todas as sociedades humanas, está profundamente comprometida com os modos como o mundo adulto a conceptualiza, como entende as crianças e como projeta nelas as suas expetativas.

A proposta editorial que apresentamos, sustentada a partir dos Estudos da Criança, vem propor um olhar crítico acerca da normatividade, cada vez mais vincada nas propostas pedagógicas para as crianças mais pequenas, nomeadamente, defendendo a necessidade de um olhar mais denso sobre a dimensão ontológica do sujeito-criança nos contextos da educação de infância, que respeite os seus direitos fundamentais, os seus tempos e culturas.

Esse olhar mobiliza um outro paradigma para considerar que a infância, sendo uma construção social, exige não só cuidados epistemológicos, éticos e práticos, de modo a respeitar as crianças a partir das diversidades que emergem de variáveis como a classe social, o género, a etnia, entre outras, mas também considerar as especificidades que as caracterizam: os modos diversos de estar e lidar com o mundo, as suas culturas e as suas competências e ação social.

Neste processo de edificação da categoria geracional da infância é incontornável, na contemporaneidade, a dimensão da institucionalização cada vez mais vincada dos quotidianos das crianças. A educação de infância, sobretudo nas últimas décadas, passou por muitas transformações, destacando-se entre outras a tentativa de a colonizar por lógicas escolarizantes, destituindo-a da sua especificidade e da sua natureza. Assistimos, de facto, a formas predatórias da educação de infância.

Neste processo, adquire especial relevo o desrespeito por direitos básicos, sendo que para tal é fundamental interpelar o modo como as organizações de educação da infância (formais e não formais) têm vindo a ser compelidas a orientar a sua missão: preocupando-se cada vez mais com uma dimensão escolarizante e desvalorizando o que é significativo para as crianças, nomeadamente, a atividade social do brincar. É fundamental inverter este enfoque e reclamar para as crianças contextos que respeitem a complexidade de que se reveste o seu estatuto de sujeitos ativos com direitos.

Propomos neste número um conjunto de abordagens que nos permitam ir além da excessiva normativização a que as crianças têm sido sujeitas. Para tal, convocamos um conjunto de investigações que têm em comum o facto de todas as intervenientes terem uma formação inicial em educação de infância, e de terem feito um percurso académico que privilegiou outros olhares sobre as crianças.

As autoras olham para as crianças pequenas para além do ofício de aluno e da sua (suposta) incompetência. Pelo contrário, mobilizando-as enquanto sujeitos chave nas suas pesquisas, desocultando assim, nuances fundamentais para compreender os seus quotidianos e em conjunto com elas poder resignificá-los de modo a que possam ser respeitadores dos seus direitos e de um lugar com sentido nos contextos de educação de infância.

Este número é composto por sete artigos, nos quais, a partir de uma dinâmica multidisciplinar, se discutem os principais eixos epistemológicos dos Estudos da Criança. Mais ainda, a partir de posições geográficas diversas, discutem-se alguns dos desafios atuais que atravessam a Educação de Infância, em Portugal, no Brasil e na Noruega.

Berit Bae, investigadora da Universidade de Oslo, apresenta uma reflexão acerca do direito de participação das crianças em contexto de educação de infância na Noruega. A partir da realidade de dois jardins de infância, a autora procura compreender a participação das crianças nas rotinas.

Eloisa Acires Candal Rocha, Márcia Buss-Simão e Juliana Schumacker Lessa apresentam uma discussão acerca da Pedagogia da Infância. Consideram que sendo um campo do saber em desenvolvimento no Brasil, não estando, assim, completamente consolidado, não tem conseguido ser uma âncora na formação e nas práticas educativas, o que constrange a construção de possibilidades educativas não hegemónicas.

Maria Teresa Graça assume como objetivo a necessidade de perceber a importância social atribuída à infância no espaço doméstico, a partir das vozes das crianças. Subscrevendo os pressupostos da Sociologia da Infância, apresenta uma investigação realizada com um grupo de crianças, em contexto de jardim de infância, acerca do lugar que lhes é reservado, enquanto filho/a.

Kátia Agostinho, mobilizando um diálogo entre a Pedagogia da Infância e a Sociologia da Infância, discute as formas de participação das crianças em contextos educativos, tecendo um conjunto de orientações para a docência na educação da infância.

Adriana Dragone e Angela Scalabrin refletem acerca dos atuais debates no Brasil sobre a alteração na definição da idade de ingresso das crianças no ensino fundamental de 7 para 6 anos. As autoras problematizam a referida alteração legislativa convocando os direitos da criança, alertando para as implicações da sua entrada precoce nesta etapa educativa.

O trabalho desenvolvido por Eunice Paula, num Centro de Acolhimento Temporário, assumindo, também, uma matriz multidisciplinar entre a Educação de Infância e a Sociologia da Infância, analisa as vivências e a participação das crianças pequenas. Conclui que os bebés (0 aos 2 anos) que se encontram em dois CAT parecem permanecer, realmente, numa invisibilidade social, não lhes sendo totalmente garantido o direito à participação.

No último artigo, Olga Azevedo traz-nos uma reflexão acerca do recreio no jardim de infância. A autora defende a importância de se estudar este espaço, porque é um dos poucos onde as crianças efetivamente brincam e nos quais recuperam uma das especificidades que mais as carateriza: a ludicidade.

Consideramos que os contributos trazidos pelos distintos trabalhos aqui apresentados serão fundamentais para ressignificar a educação de infância como uma arena, que respeite, fundamentalmente, o direito de cada criança à qualidade de vida e bem-estar.

Fazer emergir um olhar crítico e reflexivo de cada adulto, sejam eles políticos, professores, educadores ou famílias, no sentido de assumirem responsabilidades na reconstrução dos contextos onde se encontram crianças dos 0 aos 6 anos, como um locus de cidadania é o impacto desejado.